Fico imaginando a seleção das Arábias. Ninguém tabela com ninguém. Nem segue o treinador, que veio do Hamas.

Meu Grêmio Futebol Porto-alegrense teve a melhor defesa da América com Pedro Geromel e Walter Kannemann. Hoje em dia, qualquer bola que passe do meio campo pro nosso lado nos dá um frio na barriga. Bola recuada do meio pra defesa, então, nos mata do coração. Nunca se sabe o que o zagueiro vai fazer com ela. Os passes não saem porque ninguém confia em ninguém, vai que o outro dê de canela ou entregue a bola pro adversário…

Fico imaginando uma hipotética seleção do Oriente Médio. Cada qual corre para um lado diferente, ninguém tabela com ninguém. Nem segue o treinador, que veio do Hamas.

O jogo é duro. A oposição ao Hamas no mundo árabe é ampla e movida por fatores que vão de disputas políticas internas palestinas a rivalidades regionais e sectárias.

Fatah e ANP

A Autoridade Nacional Palestina (ANP), liderada por Mahmoud Abbas, é a adversária histórica do Hamas. Desde que o grupo venceu as eleições de 2006 e assumiu Gaza em 2007, expulsando forças do Fatah, as duas facções se enfrentam politicamente. A ANP acusa o Hamas de enfraquecer a causa palestina e instaurar um “regime paralelo”, enquanto o Hamas a acusa de colaborar com Israel.

Egito

O Egito, sob Abdel Fattah al-Sisi, classifica o Hamas como braço da Irmandade Muçulmana e adota política de contenção: fecha a passagem entre os dois países, destrói túneis do Hamas que atravessam a fronteira sob Rafah e limita o comércio com Gaza, acusando o grupo de apoiar militantes no Sinai.

Arábia Saudita

Riad vê o Hamas com desconfiança por sua origem islamista e sua aliança com o Irã. Prefere fortalecer a ANP e iniciativas diplomáticas, chegou a prender membros do grupo e direciona ajuda internacional de forma a contorná-lo.

Emirados Árabes

Os EAU fazem da luta contra a Irmandade Muçulmana um eixo de sua política. Após assinarem os Acordos de Abraão em 2020 — normalizando relações com Israel e rompendo o consenso árabe tradicional —, passaram a ver o Hamas como obstáculo a um Oriente Médio autoritário e economicamente integrado.

Jordânia

Expulsou a liderança do Hamas em 1999 e teme que sua retórica radicalize a maioria palestina do país. Mantém os acordos de paz com Israel e apoia a ANP.

Marrocos e Argélia

Marrocos seguiu o caminho da normalização em 2020 e se distancia do Hamas, limitando-se a apoiar a ANP. A Argélia rejeita a normalização e tenta promover a reconciliação palestina, mas sua influência é limitada — como mostrou a fracassada Declaração de Argel de 2022.

Catar e Síria

O Catar financia Gaza e abriga a liderança do Hamas, mas desde 2024 condiciona seu apoio à criação de um governo sem o grupo. A Síria rompeu relações em 2012, reaproximando-se em 2022 por mediação do Irã e do Hezbollah, embora a confiança ainda seja baixa.

Paralisia estratégica

O mundo árabe apresenta um mosaico de interesses conflitantes. Sem coesão nem confiança, cada país joga por conta própria. Não apenas não há certeza de que todos concordem qual é a sua goleira, como é provável que quando retornarem para o segundo tempo os árabes voltem a campo com oito jogadores e o combinado Estados Unidos-Israel com 14.

O projeto estadounidense e israelense para Gaza

Washington e Tel Aviv sabem que a fragmentação do campo árabe – somada ao enfraquecimento da Autoridade Palestina e ao isolamento do Hamas – cria uma oportunidade histórica para redesenhar uma “nova Gaza”, estruturada por consórcios privados e capital estrangeiro.

Essa estratégia opera em três níveis: diplomático, militar e econômico.

Negociar caso a caso

A ausência de uma posição árabe unificada permite que os EUA tratem cada país individualmente, explorando suas prioridades e vulnerabilidades. Egito recebe ajuda militar e concessões comerciais em troca de cooperação na contenção do Hamas e no controle da fronteira de Rafah. A Jordânia, dependente de apoio financeiro e segurança, é pressionada a manter a calma e apoiar uma solução liderada pela Autoridade Palestina. Os Emirados e o Marrocos são atraídos por parcerias tecnológicas e investimentos diretos que decorrem da normalização com Israel. Cada negociação bilateral aprofunda a divisão árabe e enfraquece qualquer capacidade de resistência coletiva.

Enfraquecer o Hamas

Israel conduz operações em Gaza com apoio político e logístico dos Estados Unidos, visando não apenas destruir a capacidade militar do Hamas, mas deslegitimá-lo como ator político. O objetivo declarado de Benjamin Netanyahu é eliminar a estrutura governamental do grupo, mas o objetivo implícito é abrir caminho para um novo arranjo administrativo em Gaza, possivelmente sob a égide da ANP, supervisionado por um consórcio árabe moderado e garantido por potências ocidentais. A fragmentação árabe torna mais fácil vender essa ideia como uma “solução regional”, mesmo que sirva prioritariamente aos interesses de Israel e dos EUA.

A engenharia econômica da “nova Gaza”

Washington e Tel Aviv articulam planos de reconstrução baseados em grandes consórcios privados e fundos de investimento internacionais, com forte participação de aliados estratégicos como os Emirados e a Arábia Saudita. A ideia central é transformar Gaza em um polo econômico integrado à lógica neoliberal regional, com infraestrutura moderna, resorts e zonas industriais voltadas ao capital estrangeiro – uma versão controlada e rentável do território devastado. Nesse modelo, a resistência armada não tem lugar; o espaço é ocupado por investidores, não por insurgentes.

Essa combinação de pressão diplomática, força militar e engenharia econômica é possível porque os países árabes são divididos entre si, têm suas rivalidades internas e prioridades divergentes.

Nessa imagem, é como um time sem tática nem treinamento ter que encarar o Bahia. Não vai levar menos que 4 x 0.

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Os artigos representam a opinião dos autores e não necessariamente do Conselho Editorial do Terapia Política. 

Ilustração: Mihai Cauli e Revisão: Celia Bartone
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