Ato após ato, vão se acumulando os sinais de que o apostador já perdeu muitas fichas. Do tarifaço aos anúncios de paz na Ucrânia, ele entregou muito menos do que prometia.

O tamanho da economia americana (PIB nominal) em 2010 era de 15 trilhões de dólares, o da China, de 6 trilhões de dólares. Em 2025, a riqueza dos americanos havia dobrado de tamanho, alcançando os 30 trilhões, enquanto a dos chineses mais que triplicado, chegando aos 19 trilhões. Se em 2010 a economia do Império era 2,5 vezes maior que a chinesa, apenas 15 anos depois a diferença havia se reduzido para uma vez e meia.

A conclusão óbvia é que as reações críticas à política tarifária de Donald Trump são tremendamente injustas. Há ou não justificativas para o tom quase histérico do tarifaço de 2 de abril?

Dito isso, e passado o impacto midiático inicial, foi se tornando cada vez mais claro que havia, na forma e no conteúdo do anúncio, primeiramente um quantum considerável de performance ou, como diriam os de língua inglesa, show off. Mas havia também uma boa dose de blefe e uma após outra as taxações impostas foram sendo renegociadas.

Ainda que tenham provocado tumulto e produzido realinhamentos de parte a parte, o impacto das taxações foi bem menor do que o inicialmente esperado – o que já se tornou consenso entre os analistas.

Passados esses seis meses, acumulam-se os sinais de que ato após ato o rei perdeu muitas das fichas com que entrou no cassino.

Para além de sua política tarifária, cada uma de suas performáticas ações em defesa da paz mundial – seus esforços para demonstrar que é o galo do quintal – foram indo por água abaixo ou nunca passaram, mais uma vez, de show off: a paz imposta por seus aliados israelenses aos palestinos de Gaza, a negociação com Putin para dar fim à guerra na Ucrânia, as espantosas ameaças contra o governo legitimamente eleito de Gustavo Petro na Colômbia.

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A história costuma ser pródiga na produção de peripécias de natureza variada: tragédias, farsas, ironias. Em meados do século XIX, por exemplo, a potência imperial da época, a Inglaterra, declarou uma intervenção militar contra a China do imperador Qing. O episódio ficou conhecido como a Guerra do Ópio e as consequências dramáticas para a civilização chinesa duraram por pelo menos um século, até a vitória da revolução liderada pelos comunistas de Mao Zedong.

Mais ou menos do mesmo modo como agora o presidente americano, usando o pretexto que lhe parece mais conveniente, ameaça declarar intervenção armada ora contra a Venezuela, ora contra a Colômbia, ou contra quem lhe aprouver.

Num e noutro caso, numa e noutra época, um pano de fundo semelhante: no passado, foi o ópio produzido pela Índia (então colônia britânica) e introduzida ilegalmente na China por ordem da matriz, agora é a cocaína produzida na América Latina e consumida em obscenas quantidades pelos eleitores (e não eleitores) de Donald Trump. Os sinais estão apenas ligeiramente trocados.

Ao contrário dos ingleses da rainha Vitória, que então promoviam o tráfico estatal de drogas apenas para reequilibrar sua deficitária (com a China) balança comercial, a alegação do imperador de agora para apontar a artilharia contra os outros é a entrada da cocaína no sacrossanto território imperial.

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É mais ou menos assim como o Império estabelece seus padrões de moralidade, ou se moralidade soa como uma exorbitância, daquilo que é aceitável e do que não é quanto às políticas que adota, tanto externa quanto internamente.

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Com uma das mãos Trump espanca opositores e imigrantes pobres – aqueles que compõem os exércitos de mão de obra barata à disposição da economia nacional. Ao mesmo tempo em que aproveita para ampliar os mecanismos do Estado Policial e verificar até onde pode esticar a corda sem que a opinião pública apresente sinais de desconforto. Em geral, bater em pobre nunca é motivo para molestar a volúvel moralidade dos cidadãos de bem.

Mas não é apenas isso. Há claros indícios de que o que a administração trumpista pretende é gradativamente reformar o aparelho do Estado, aumentando os poderes do executivo sobre as demais instituições da democracia e sobre a sociedade em geral e, simultaneamente, a liberdade de ação para o capital.

Percebendo para onde o vento está soprando, uma parcela ainda muito minoritária da população começa a dar nome ao fenômeno. Uma dentre várias manifestações realizadas no último domingo listava o que seriam sinais de fascismo à vista: utilizar a polícia secreta e as forças armadas contra a população civil, negar a realidade com mentiras constantes, controlar os meios de comunicação, normalizar a corrupção, recusar o resultado das eleições quando desfavoráveis, reescrever a história, etiquetar as minorias como inimigas, utilizar o medo para concentrar mais poder, substituir a ciência pela ideologia, acusar os outros dos seus próprios crimes, normalizar a violência como método político. E por aí vai.

Com a outra mão abre os salões da Casa Imperial para se confraternizar com o clube dos bilionários em faustosos banquetes. Num desses regabofes recepcionou os donos das chamadas big techs, republicanos ou democratas – fossem quem fossem, desde que pertencentes ao topo da cadeia alimentar. Lá estavam as figurinhas carimbadas Mark Zuckerberg, Tim Cook, Bill Gates, Sergey Brin, entre outros e outras.

Contam as colunas sociais e as primeiras páginas dos grandes jornais que o jantar aconteceu “no recém-renovado jardim da Casa Branca, o chamado Rose Garden”, no último 4 de setembro.

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A fotografia de cada uma das mãos não poderia, portanto, ser mais explícita – e ao menos parte dos diálogos perfeitamente imagináveis. Quem sabe, num determinado momento entre uma garfada e outra, um daqueles importantes personagens não tenha se dirigido ao colega ao lado para expor o desejo certamente comum entre todos eles:

“O que queremos criar é uma nova e remodelada sociedade, uma sociedade de nobres, onde tudo (nos) seja consentido”.

Nem a frase, nem a intenção são exatamente novas.

Numa das cenas de Os Deuses Malditos (Luchino Visconti, 1969), Aschenbach (Helmut Griem), jovem oficial das tropas SS e consigliere da família Essenbeck, diz a Friedrich Bruckmann (Dirk Bogarde): “Você precisa entender que hoje, na Alemanha, tudo pode acontecer, mesmo o improvável – e isso é só o começo, Friedrich. A moral está morta. Somos uma sociedade de elite onde tudo é permitido”. (Há pequenas variações conforme a tradução.)

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Os artigos representam a opinião dos autores e não necessariamente do Conselho Editorial do Terapia Política. 

Ilustração: Mihai Cauli e Revisão: Celia Bartone
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