
Uma coisa parece certa: o capitalismo tem mostrado muitas faces e muitas repercussões positivas e negativas ao longo de sua história e muitas outras há ainda de mostrar. Tem sido assim desde que os meios de produção foram apropriados privadamente, o que deixou os não-proprietários de meios de produção na dependência de algum capitalista, ou do Estado, para sobreviver vendendo seu corpo (ou seja, sua força de trabalho). Ao lado disso, ocorreram avanços na estrutura produtiva, nas técnicas produtivas e organizacionais, além de várias outras repercussões no dia e na vida do conjunto das pessoas. Esses são fatos e ocorrências visíveis no capitalismo, pelo menos para os menos desavisados, mas muitos outros fatos insistem em ficar, por conveniência ou por estratégia, encobertos debaixo de todas as chaves.
Recentemente, o presidente Lula da Silva externou uma espécie de desabafo, em que expôs o drama de um presidente eleito, que termina tendo que fazer o que não gosta ou não gostaria por conta de pressões de determinados grupos sociais, os chamados lobbies. Disse ele: “a gente ganha as eleições com discurso de esquerda e quando começa a governar atende muito mais os interesses de nossos inimigos do que dos nossos amigos”. Ressaltou então “a cobrança do mercado e a necessidade de contentar o mercado e os adversários” e de “dar resposta ao que a imprensa publica sobre nós”. Aqui, particularmente, foi por ele nominado o “mercado” e outros lobbies foram sugeridos sem denominação mais explícita. Pela forma como foi dito o desabafo de um político experiente e afeito a pressões e contrapressões, ecoa como um fato a ser melhor entendido.
O Estado capitalista, como alguns mais informados sabem, é dominado ou orientado pelos interesses dos grupos capitalistas mais influentes em cada conjuntura. Isso é mais ou menos visível em países diversos, porém como ficam os interesses dos não-capitalistas, no caso os que o presidente denominou como “amigos”, nesse contexto?
Vale aqui uma digressão histórica. Teorias das mais diversas foram formuladas e reformuladas para tentar decifrar o Estado capitalista e seu papel no jogo econômico e político. Desde uma “idílica” que propõe ser o Estado permeável a todos os grupos e indivíduos, a chamada concepção pluralista, ao capitalismo monopolista de Estado, que entende o Estado capitalista como agente dos grupos hegemônicos economicamente. Entre um e o outro lado do espectro, outras concepções já foram propostas, matizando a esfera política, isso é, a participação popular ou a voz das ruas (e das redes) com o econômico.
Concepções à parte, o fato é que o Estado capitalista sofre influências e pressões encobertas no manto de um Estado que, dizem, “visa o bem comum e a regulação dos mercados” e que praticaria políticas autônomas saídas de seu próprio ventre. Ou que teria vontade própria. Na verdade, o que ocorre é que os capitalistas, os considerados “inimigos” pelo presidente, costumam emplacar políticas que os beneficiam. Aos não-capitalistas, na prática, resta buscar através da luta política a melhoria do seu poder de barganha, uma disputa bastante assimétrica, vale ressaltar. Assim, em alguns momentos mais raros da história os trabalhadores conseguiram alguns avanços na distribuição de renda. Em outros momentos mais frequentes, a correlação de forças lhes é desfavorável.
Uma coisa, no entanto, parece clara: nunca o peso da mão visível do mercado e do poder econômico de oligopólios e monopólios se fez tão forte como no Estado capitalista contemporâneo. Tendo em conta o caso do Brasil, o que está em andamento é um desequilíbrio de forças nunca antes visto, embora não apenas no Brasil. O sistema financeiro, chamado de “Faria Lima”, junto com o agronegócio, as Bets e as big techs, principalmente, têm dominado a cena econômica já há algum tempo, em sintonia com o rentismo cada vez mais exacerbado.
Destaque aqui para as Bets, particularmente perniciosas, que atraem a população para a jogatina, em que ganham seus donos e perdem principalmente pessoas de baixa renda. As big techs, por sua vez, extraem renda de variadas formas e resistem a qualquer regulação. A Faria Lima e os super-ricos, por sua vez, estão sempre à espreita para drenar para si recursos públicos e/ou privados, nos quais a taxa de juros é só uma das fontes dos ganhos bilionários de alguns. São estes os “inimigos” e esse é o cenário formado pelos cidadãos da primeira classe, que se acham no direito de quase não pagar imposto de renda, por exemplo, ao contrário dos demais pobres mortais.
Dito isso, vale aqui observar o comportamento do Governo Lula 3 diante de um Congresso fortemente adverso e dos grupos econômicos hegemônicos, que concentram de forma inusitada o poder de pressão. O que se vê é um governo sitiado, fazendo manobras contorcionistas, tentando abrir brechas para implementar minimamente as promessas de campanha e algumas políticas que tornem menos árdua a vida dos desempoderados. Do outro lado, os lobbies e o Congresso cercando o orçamento público para manter e ampliar seus interesses.
Nesse contexto, quais seriam os interesses dos “inimigos” que Lula da Silva admitiu atender, em detrimento dos “amigos”? Isso não ficou claro no discurso do presidente, mas podemos imaginar que um deles seja a manutenção da taxa de juros nos níveis absurdos de mais de 10% ao ano em termos reais. O juro alto, por sua vez, está ligado à manutenção em 3% ao ano da meta de inflação a ser perseguida pelo Banco Central. Uma meta bastante irrealista, passível de ajuste para cima, não proposto pelo Governo, e que “justifica” o atual patamar de juros de 15% ao ano da taxa SELIC. Um outro pode ser o volume também absurdo de emendas parlamentares que o Congresso usurpou do Poder Executivo. A própria proposta de arcabouço fiscal, quase similar ao famigerado teto de gastos, pode ser outro ponto que atende ao mercado, embora seus representantes esbravejem contra ele.
A taxa de juros era objeto de reiteradas cobranças ao Banco Central na era Campos Neto. Agora que a diretoria do BC foi substituída por indicados pelo atual presidente, as cobranças ficaram quase esquecidas. No máximo diz-se que a taxa poderia ser menor e que o COPOM herdou uma espécie de cilada, que trava a queda dos juros. As emendas parlamentares e o orçamento secreto catapultados nos governos anteriores (Temer e Bolsonaro) foram bastante criticados durante a campanha eleitoral e hoje também parecem ter sido assimilados. Esses casos parecem se enquadrar bem no discurso de atendimento aos inimigos. Também se enquadram no entendimento do Estado capitalista que apoia interesses de grupos hegemônicos.
Observando o comportamento do discurso oficial sobre a taxa de juros, as emendas e outros itens menos destacados pode-se, quem sabe, entender a complacência em curso. Ou a prática de atender o que é de interesse dos “inimigos” poderosos, enquanto tenta-se emplacar algumas políticas que atendem ao andar de baixo e assim, legitimam o governo. Pode muito bem ter sido esse o caso da aprovação da mudança na tabela do imposto de renda para os que ganham até R$7.350,00, o programa Pé de Meia, o Vale Gás, a redução ou isenção da conta de eletricidade e outros. Com isso, o sistema financeiro e os rentistas passam a pagar um imposto de renda mínimo para os padrões internacionais e, em troca, continuam obtendo juros estratosféricos; os congressistas mantêm as emendas obscenas e por aí vai. Emendas essas que, diga-se, beneficiam grupos capitalistas locais das chamadas bases dos congressistas. Com isso, o jogo político segue nessa barganha que termina favorecendo os mais empoderados, ou seja, os muito ricos, enquanto fazem algumas poucas concessões arrancadas com muito esforço.
Isso significa que o Governo Lula 3 é neoliberal como dizem alguns? Ou que não faz o enfrentamento aos interesses do capital, como seria de se esperar de um governo dito de esquerda? Não parece razoável responder afirmativamente. Aceitar tais afirmações sem tentar entender minimamente os ingredientes em jogo é cair no simplismo ou no jogo rasteiro e superficial. Seria ignorar o peso político e econômico do capital financeiro principalmente e o do Centrão no Congresso. Na verdade, há que se levar em conta o poder que têm os capitalistas/rentistas e os congressistas, para não ir mais longe, antes de rotular o Lula 3. Ou seja, não é fácil nem simples enfrentá-los e vencê-los. Porém, também precisamos ter em conta que o enfrentamento precisa ser feito, mesmo que as defesas (e os ataques) dos adversários sejam fortes.
Aqui reside o ponto nevrálgico da questão: o Governo atual está fazendo esse combate com todas suas forças? Em parte, parece que sim, mas deixa a desejar. Algumas políticas favorecedoras dos trabalhadores estão sendo adotadas (valorização do salário mínimo, auxílios diversos, transferências de renda etc.). Faz isso por um lado, mas por outro, favorece o capital em vários outros aspectos. Até pelo desequilíbrio de forças do jogo que tem sido jogado. Poderia avançar mais a favor dos não-capitalistas? Muito provavelmente sim, se agisse com mais articulação e em sintonia com estes. Mais articulação inclusive internamente, o que, ressalve-se, tem sido difícil por ser este um governo de frente ampla.
A questão que resta é: há alguma alternativa mais razoável ao quadro descrito por Lula? Uma coisa precisa ser entendida: os do andar de baixo só conseguem melhorias com muita organização e muita luta. Um governo de esquerda tem que favorecer essa organização e essa luta. Embora difícil de articular, notadamente na atual conjuntura de poder de barganha tão favorável ao capital, a saída possível é buscar o apoio da população com mais coesão interna. Fazer ecoar as vozes das ruas de forma organizada.
Essa alternativa exige uma postura mais firme do Governo e muito mais articulada com as “bases”, como era dito tempos atrás. O recente episódio das manifestações de rua contra a PEC da Blindagem e contra a anistia aos golpistas mostra que é possível acionar essa alternativa. Com isso, o Governo Lula 3 teve espaço para aprovar com mais facilidade a reforma do imposto de renda. A derrota que se seguiu com a não aprovação da MP que substituía o aumento do IOF mostra que o embate é renhido e os limites estreitos, apesar das concessões feitas aos capitalistas acima expostas.
Assim, mais gente na rua vai ser preciso para avançar. Mais coragem e determinação de enfrentar os poderosos interesses em jogo certamente também. Para isso, o Governo precisa atuar mais próximo dos movimentos populares, tendo estes como apoio para o embate, coisa que não tem sido muito evidente. Nesse contexto, resta ver como caminhamos para a eleição de 2026. Impossível ganhá-la? Certamente que não, porém vai depender das articulações e da coesão que resultar de esforço e coragem. Esforço de rearticular os partidos de esquerda com os mais necessitados e coragem para o embate com os interesses e a ganância da classe dominante. A grande maioria da população certamente vai aplaudir e pedir bis se isso vier a ocorrer.
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Os artigos representam a opinião dos autores e não necessariamente do Conselho Editorial do Terapia Política.
Ilustração: Mihai Cauli e Revisão: Celia Bartone
Leia também “Os lobbies poderosos”, de Marcos de Queiroz Grillo.






