
A Argentina vive, sob Javier Milei, a experiência neoliberal mais radical do século XXI no continente. É um governo que combina austeridade suicida, destruição institucional, alinhamento absoluto a Donald Trump e uma guerra cultural permanente. Em qualquer outro momento da história argentina, a crise atual teria derrubado presidentes. Mas Milei segue forte. Por que? O que o sustenta? E o que explica a derrota da esquerda — mesmo com o empobrecimento acelerado do país? Este artigo se propõe a examinar o fenômeno Milei em toda a sua complexidade econômica, social e geopolítica.
O experimento Milei: Estado mínimo, ajuste máximo
Javier Milei não governa como um presidente convencional. Governa como um performer político, um influencer de extrema direita que transformou a crise nacional em espetáculo permanente. Seu programa não é simplesmente um ajuste econômico: é um projeto ideológico de destruição acelerada do Estado argentino, acompanhado de uma guerra cultural contínua e calculada.
A austeridade é de magnitude inédita. O governo promove cortes draconianos em universidades, ciência, educação básica, programas sociais, aposentadorias e subsídios essenciais para o custo de vida. Obras públicas foram praticamente paralisadas. Empresas estatais estratégicas enfrentam processos de desmonte. Tudo isso com aplauso explícito do Fundo Monetário Internacional (FMI), que trata Milei como o “aluno-modelo”, ainda que os impactos sociais rivalizem com os piores momentos de 2001.
A guerra cultural é o outro pilar do governo. Milei ataca jornalistas, governadores, sindicatos, artistas, universidades, movimentos sociais e até países aliados — como Brasil, Espanha e China. A retórica repetidamente agressiva segue a cartilha banonista e trumpista: criar inimigos para esconder a realidade econômica. Trata-se de uma estratégia de sobrevivência: transformar a dor social em batalha moral.
Por que Milei se sustenta? Os pilares invisíveis do seu poder
A grande pergunta que analistas fazem, dentro e fora da Argentina, é evidente: como Milei permanece politicamente de pé diante de uma crise social que seria explosiva em qualquer outro país?
A resposta envolve cinco fatores centrais.
a) O anti-peronismo como identidade política
Existe na Argentina um setor consolidado, historicamente enraizado, que considera o peronismo não apenas um adversário político, mas um inimigo existencial. Para esse grupo, Milei é visto como a vingança histórica contra décadas de governos que identificam — corretamente ou não — como responsáveis pela decadência econômica.
Esse anti-peronismo estrutural é emocional, visceral, e funciona como blindagem automática: pouco importa que Milei ataque seus salários; importa que ataque seus inimigos.
b) A esperança irracional do “amanhã melhor”
Uma parcela significativa da população está disposta a tolerar sofrimento extremo sob a crença de que “o pior já passou” e que o ajuste abrirá caminho para um futuro de crescimento. Trata-se de esperança — mas também de negação psicológica diante do empobrecimento.
É o mesmo mecanismo que sustentou Menem nos anos 1990 e que hoje encontra eco no discurso tecnocrático do FMI.
c) A blindagem externa: EUA + FMI
Milei só está de pé porque Estados Unidos (EUA) e FMI o blindam.
Washington o considera seu aliado ideológico preferencial na América do Sul — um contraexemplo do presidente brasileiro Lula e um corpo avançado da extrema direita hemisférica.
O FMI, por sua vez, flexibiliza metas, libera recursos, ajusta métricas e demonstra uma tolerância inédita para um país em recessão profunda. Essa blindagem é geopolítica, não econômica. Sem ela, o governo já teria implodido.
Apesar de a narrativa oficial celebrar a queda recente da inflação — que de fato desacelerou, mas à custa de um choque recessivo brutal, forte repressão à demanda, cortes de subsídios e atraso tarifário insustentável — é preciso lembrar que essa aparente “estabilização” repousa sobre bases extremamente frágeis. A Argentina hoje depende de um colchão de financiamento externo que não existiria sem o Support Assistance Package (SAP) de US$ 20 bilhões articulado pelos Estados Unidos, um pacote político-financeiro que precedeu a eleição de Milei e moldou diretamente o ambiente macroeconômico argentino. Esse apoio extraordinário — que não foi oferecido a nenhum governo progressista na última década — garantiu dólares, previsibilidade temporária e blindagem diplomática ao experimento neoliberal. Em outras palavras, a queda da inflação não é o resultado de uma “vitória da liberdade”, mas da maior intervenção geopolítica norte-americana na economia argentina desde a ditadura: um gesto calculado para viabilizar Milei e consolidar o laboratório extremo do trumpismo no Cone Sul.
d) Donald Trump como fiador político
A relação entre Trump e Milei é uma simbiose estratégica. Para Trump, Milei é peça-chave de sua ofensiva geopolítica: um laboratório neoliberal na América Latina, uma vitrine ideológica e um aliado disposto a confrontar China, progressistas e instituições multilaterais. Para Milei, Trump é garantia de sobrevivência — acesso privilegiado ao poder real em Washington, mesmo antes de sua eventual volta à Casa Branca.
A visita humilhantemente submissa de Milei a Mar-a-Lago foi muito mais que cerimônia: foi juramento de fidelidade.
e) A fragmentação da oposição
O peronismo atravessa uma crise de identidade e lideranças. Sofre com divisões internas, ressentimentos, disputas judiciais e incertezas estratégicas. A esquerda ampliada está sem narrativa mobilizadora — e sem figuras capazes de organizar o descontentamento.
Resultado: Milei mantém o monopólio do discurso sobre o futuro. Quem controla a narrativa controla o país.
Trump e Milei: o eixo ideológico da extrema direita nas Américas
O alinhamento entre Milei e Trump vai além da diplomacia. É o primeiro grande experimento político do trumpismo fora dos Estados Unidos. Ambos compartilham:
- desprezo por instituições democráticas,
- demonização da imprensa,
- culto à personalidade,
- hostilidade à China,
- retórica anticomunista delirante,
- protagonismo em redes sociais,
- desprezo por evidências científicas.
Trump usa Milei como vitrine hemisférica: um suposto “modelo de coragem” contra o Estado, sindicatos e políticas redistributivas. Milei, por sua vez, usa Trump como selo de legitimidade internacional.
É uma nova versão de dependência política: a dependência ideológica.
A derrota da esquerda: crise, exaustão e falha de narrativa
A esquerda argentina sofreu uma derrota dolorosa na eleição — e em condições profundamente adversas para o povo. Esse paradoxo exige explicação articulada.
Primeiro, a inflação crônica corroeu a confiança pública nos governos progressistas. A memória recente de deterioração é forte — e disso Milei se aproveitou. Segundo, a sociedade argentina estava politicamente exausta. Em momentos assim, discursos radicais de ruptura ganham espaço. Terceiro, o campo progressista falhou em simbolizar esperança. A campanha que deveria representar futuro acabou parecendo defesa do passado.
Além disso, Milei dominou completamente as redes sociais: TikTok, Instagram e X, impondo sua agenda por algoritmos e emoção — e não por dados. Contraditoriamente, a juventude, seduzida pelo antissistema, foi decisiva na vitória eleitoral do projeto mais anti juventude da história argentina.
O que segura Milei? O tripé central do seu poder
A sustentabilidade política de Milei pode ser resumida em três pilares:
- A narrativa. Milei transformou a crise real em duelo moral. Seu discurso não é sobre inflação ou pobreza, mas sobre “casta” x “liberdade”.
- O respaldo geopolítico. Com o apoio dos Estados Unidos e do FMI, Milei governa com imunidade financeira e diplomática.
- A ausência de alternativa convincente. Enquanto a oposição não construir projetividade — e não reorganizar suas lideranças — Milei continuará capitalizando o caos.
O futuro: riscos, limites e a força da sociedade argentina
O governo caminha para sua fase mais delicada. O ajuste fiscal é insustentável socialmente; a queda do consumo torna qualquer recuperação improvável; a recessão é profunda; os salários estão nos menores níveis em décadas. Conflitos com governadores ameaçam romper o equilíbrio institucional. A resistência sindical cresce. Mas há um elemento que Milei não controla — e que não desapareceu.
A rebeldia histórica da sociedade argentina
Há, na Argentina, uma variável estrutural que escapa inteiramente à engenharia neoliberal: a vitalidade histórica de seu povo. A população argentina é das mais politizadas, escolarizadas e socialmente mobilizadas do continente. A Confederação Geral dos Trabalhadores (CGT), os sindicatos docentes, os bancários, os metalúrgicos, os movimentos territoriais e os organismos de direitos humanos já resistiram a ditaduras, hiperinflações e experimentos neoliberais tão violentos quanto o atual. Nada indica que essa sociedade aceitará a destruição de direitos como destino inevitável. A história argentina ensina que nenhum governo que governou contra o país real — contra trabalhadores, aposentados e jovens — se sustentou indefinidamente.
O horizonte político até 2027
O mandato de Milei termina em dezembro de 2027. Mas nada sugere que sua coalizão social seja sólida o suficiente para resistir a três anos de recessão, conflito permanente e deterioração acelerada do bem-estar. À medida que o tecido social se reorganiza, os sindicatos se rearticulam e o movimento estudantil retorna às ruas, abre-se um novo horizonte político. A Argentina é um país que já interrompeu ciclos autodestrutivos: foi assim em 1983, foi assim em 2001 — e pode ser assim novamente.
A reconstrução possível
A crise atual, por mais devastadora que seja, também anuncia a possibilidade de um novo ciclo. A Argentina não é uma sociedade apática: é uma sociedade que reage, que se organiza e que nunca aceitou passivamente a lógica da destruição neoliberal. Quando reagir — e reagirá — abrirá caminho para um novo projeto democrático e social, capaz de reatar com sua identidade, seu espírito coletivo e sua história de conquistas.
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Os artigos representam a opinião dos autores e não necessariamente do Conselho Editorial do Terapia Política.
Ilustração: Mihai Cauli e Revisão: Celia Bartone
Leia também “As eleições argentinas, o peronismo e a esquerda”, de Néstor .






