
Marilinda entrou na loja com olhar de lince. Atenta aos produtos, quase não viu o vendedor à sua frente.
– Boa tarde, madame!
– Olá. Gostaria de saber mais sobre aquele ali – disse apontando para um rapaz forte, alto, de cabelos raspados e corpo com tatuagens de símbolos exóticos e palavras escritas em alfabetos mortos.
– É um modelo básico. Lutador nas horas vagas. Tem diploma de curso superior, mas não sabe muita coisa além do fundamental da sua área. Já vem equipado com um sentimento de superioridade só por ser homem branco. Às vezes, precisa bater em mulher e em viado para manter esse sentimento.
– Interessante… E custa quanto?
– Na promoção sai por cinco mil. Está um preço muito bom, ainda mais se levar em conta que ele acha que vale muito mais do que isso.
– Sei… E aquele outro ali?
– Ah! Aquele é bem mais barato, como a madame pode ver. Nessa cor são, naturalmente, mais baratos. É forte, tem dentes bons, veja! – com os polegares arreganhou-lhe as bochechas descobrindo dentes brancos e bem alinhados.
– Uma boa dentição. É estudado?
– Sim! Mas sabe como é, neste modelo não se valoriza muito o conhecimento. Quando diz coisas inteligentes ou mesmo sábias é só não dar atenção ou tratar como coisa sem importância. Aliás, fazer isso é necessário para esta peça não querer sair do seu lugar.
– E custa quanto?
– O preço normal é três mil. Não se paga mais do que isso por uma peça assim. Mas nesta Black Friday está por apenas dois mil.
– Não sei… Parece bom… Mas o que eu procuro é uma peça para coisas bem simples. Capinar, cortar árvores, carregar peso, lidar com bichos malcheirosos. Não precisa ser algo tão caro quanto esses aí.
– Entendi, madame! Temos este aqui: Trabalhador. Modelo bem básico, sem acessórios, mas eficiente. Custa pouco. Na promoção sai por menos de mil ao levar mais de dois. Não tem muito estudo e são fáceis de se programar. Só são meio preguiçosos, não aguentam muitos dias seguidos trabalhando por mais de 12 horas por dia, por isso, se a madame os quiser comprar, sugiro que leve também um modelo capataz.
– E é caro?
– Não, custa só um pouco mais do que o modelo Trabalhador. Temos um aqui que é coisa rara de se encontrar por este preço, muito procurado porque já vem com perversidade. Ele coloca os outros para trabalhar por conta própria, por prazer mesmo. Também ameaça, agride e até mata se for preciso. A polícia compra muito deste modelo.
– Parece bom mesmo.
– Outra coisa que está valendo à pena comprar nesta Black Friday é este modelo aqui, o Empreendedor 2025 já no modelo 2026. Vem com algum estudo, mas com muita coisa aprendida de coach. Faz de tudo um pouco. Trabalha bastante na esperança de ficar rico. Às vezes é preciso até mandá-lo parar para não quebrar por burnout. Não gasta quase nada, não reclama do dono. Você pode lhe dar trabalhos degradantes em condições péssimas que ele aceita dizendo que adora desafios. É uma tecnologia muito interessante. Só não substitui o modelo trabalhador porque acha que sabe das coisas e aí acaba tendo alguma iniciativa. Mas, no geral, trabalha sem a necessidade de um capataz.
– É mesmo. Eu tenho alguns, mas gostei deste modelo novo. Acho que vou levar uns dois. Também vou querer cinco daqueles feios para capinar e um capataz. Tem deles pretos?
– No momento estamos em falta destes no modelo preto. Como custam menos, saem muito rápido. Mas temos na cor parda e com sotaque nordestino que também são mais baratos.
– Vou levar. E aquele ali?
– O que está lá no fundo?
– Sim. Ele parece ter algo diferente, não sei o que é.
– Não está à venda. Veio com defeito. Ele tem consciência das coisas.
– Tem conserto?
– Eu não sei. Nesses casos, nós os mandamos para a alienação, mas poucos voltam. Quando não tem jeito, acabam amargurados ou os matamos.
– Um desperdício…
– Sim, um grande desperdício.
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Ilustração: Mihai Cauli
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