
A aparente tautologia da frase “Polícia é polícia, bandido é bandido” escancara uma realidade que não poucas vezes atravessa e ensombrece a política brasileira – no artigo do dia 2/11 (Quando a polícia se iguala aos bandidos, e o governador ao capo) ela se referia à atuação da polícia do governador Cláudio Castro do Rio de Janeiro. De não muito tempo para cá, essa realidade tem se estendido por incontáveis cantos da vida social do país e se tornado cada vez mais evidente. A tal ponto que, em setembro passado, o Congresso chegou a aprovar a chamada PEC da Blindagem – que praticamente impedia que deputados fossem processados por quaisquer crimes cometidos por eles, exceto com a permissão dos seus próprios pares. A referida proposta obteve 344 votos a favor e 133 contra.
A festa no Plenário que se seguiu à aprovação, capitaneada pelo popularíssimo Nikolas Ferreira e pela turma dos mais entusiasmados bolsonaristas, tinha ares de orgia. O gozo estava estampado na cara de cada um deles. Beijos e abraços eram trocados efusivamente. Sabiam que estavam sendo filmados e que a cena seria reproduzida nos telejornais da noite. Não apenas estavam pouco se lixando, como pareciam contentes em exibir seu escárnio contra a boa vontade dos simples mortais.
A reação, no entanto, não foi a que esperavam. A repulsa imediata da opinião pública fez com que a PEC da impunidade (como passou a ser conhecida) não prosperasse. Enviada à Comissão de Constituição e Justiça do Senado (CCJ) foi rejeitada por unanimidade.
Mas foi por pouco, muito pouco – e daqui para a frente todo alerta também será pouco. Os larápios sempre esperam novas oportunidades.
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Quando assistimos na TV a um dos filhos do presidiário Jair Messias Bolsonaro desafiando as instituições da República e da democracia na figura do Supremo Tribunal Federal, ou a Alexandre Ramagem repetindo na forma e no conteúdo a arrogância épica de Eduardo Bolsonaro, a frase citada acima faz disparar de novo o alarme. Ramagem foi um dos auxiliares mais diretos do ex-presidente, e um dos mais próximos da família Bolsonaro. Exerceu a Diretoria-Geral da ABIN (Agência Brasileira de Inteligência) e foi indicado pelo chefe para diretor da Polícia Federal – mas impedido de assumir por determinação do STF.
Condenado pelo Supremo a 16 anos de prisão por participar da tentativa de golpe de Estado liderada por Bolsonaro e desde setembro foragido nos Estados Unidos é, sem hipérbole, o que os dicionários definem como bandido: alguém que aos olhos da lei comete algum tipo de crime. Um sentenciado ou delinquente, um fora da lei e malfeitor. Mas, na bolha de realidade paralela onde se reproduz, quer fazer-se apresentar como o mocinho (como alguns se lembrarão, o termo vem dos filmes de faroeste dos anos 1950). Antes de assumir a direção da ABIN, Ramagem era por profissão delegado da Polícia Federal. De modo que a frase do bandido dos anos 1970 para se referir aos policiais corruptos do Esquadrão da Morte e afins da época da ditadura militar serve à perfeição para enquadrar o policial-bandido Alexandre Ramagem.
O foragido (ou fujão, se preferirem) pode, quem sabe, ser ótima pessoa, quem sabe, excelente pai de família e, quem sabe, magnífico esposo daquela senhora que gravou vídeo para justificar a fuga da família para os Estados Unidos. Mas do ponto de vista das Leis que regem a vida dos brasileiros é, ipsis litteris, um fora da lei cuja captura está decretada. Numa palavra, um bandido – seu uso aqui é, portanto, uma definição, não uma ofensa.
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Agora, o esvaziamento do sentido das coisas e palavras com o qual operam (por exemplo, comparando a prisão do chefe à do líder sul-africano Nelson Mandela) e, logo, a inversão que promovem, volta-se contra eles: querem se apresentar como os heróis salvadores da dignidade da pátria, mas estão condenados (com sentença transitada em julgado, como se diz em juridiquês) pelas instituições que legitimamente a representam – pelo menos é assim na Democracia Parlamentar ocidental. E aqui se trata de fato consumado, não de narrativa, como se costuma dizer.
Ironicamente, a atuação, os métodos, o discurso e a psique do foragido Ramagem e seus comparsas da autoproclamada extrema direita encontram parentesco nas delirantes decisões que assaltaram, a partir de certo momento, as organizações terroristas de extrema esquerda na Europa dos anos 1970. (De nenhuma maneira estou sugerindo que a alternativa seja o centro do espectro político, nem muito menos suas variações. Esse centro, ao longo da história, quase sempre serviu de anteparo ou biombo para o crescimento da ultradireita.) Tanto quanto para as Brigadas Vermelhas na Itália ou o Baader-Meinhof na Alemanha, para o bolsonarismo e sua tropa de choque a realidade é apenas um minúsculo detalhe a ser afastado para que seus desejos paranoicos e seu autoritarismo se imponham.
Condenados pela justiça do país que pretendiam por quaisquer meios voltar a governar, tratam de lançar contra ela a pecha de ilegítima – porque, no final das contas, legítimo para o bolsonarismo é somente aquilo que dá suporte às suas intenções. E desde bem longe, protegidos por aliados próximos do Imperador, se enchem de coragem para lançar desafios e ameaças contra tudo e contra todos que, no país que deixaram para trás, não se identificam com seus sonhos golpistas e seus desejos de voltar ao poder a qualquer preço.
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Há, porém, pelo menos duas importantes diferenças com relação àqueles grupos de extrema esquerda que ao final de suas trajetórias despencaram do campo da política para o do banditismo.
A primeira é que, pelo menos em suas origens, havia neles princípios éticos ou uma vontade genuína de lutar contra as iniquidades do mundo em que viviam, portanto, alguma noção do bem e do mal. O bolsonarismo, ao contrário, se orienta apenas e desde a mais tenra idade para saciar sua sede de empoderamento para a própria turma de apaniguados – é claro que não poderia haver melhor companheira de viagem para a conquista dessa combinação de objetivos quase que exclusivamente familiares e corporativos que a pregação entusiasmada do ideário neofascista.
A segunda é que aqueles grupos terroristas tinham em sua origem, senão uma base social, ao menos alguma conexão com aquele espírito de época que atraiu a boa vontade de uma parcela significativa da sociedade. Logo foram se afastando e perdendo contato mesmo com os setores mais descontentes, inflamados e impacientes com ausência de mudanças do status quo, suas velhacarias e sua brutalidade intrínseca.
O bolsonarismo, ao contrário, não apenas tem e mantém uma imensa base social – apesar de todos os seus mais recentes percalços – como a vê se consolidando e crescendo aqui e mundo afora.
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Os artigos representam a opinião dos autores e não necessariamente do Conselho Editorial do Terapia Política.
Ilustração: Mihai Cauli e Revisão: Celia Bartone
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