Lutar pela vida e por um mundo melhor é um caminho difícil, às vezes impossível, mas não convém desanimar

Foi Goethe quem escreveu no seu famoso “Fausto” que o “filho favorito da fé é o milagre” (Das Wunder ist des Glaubens liebstes Kind). As palavras fé e milagre podem ser religiosas ou poéticas, como é o caso de Goethe, que foi marcado pela fé dos antepassados, mas não foi religioso. Influenciado por Espinosa, Goethe foi um dos grandes artistas da humanidade. Tanto a ciência como a psicanálise têm dificuldades diante de temas poéticos como o amor, a fé e o milagre, que podem ser sentidos, imaginados e expressam emoções e ilusões. Na minha infância, a fé era um imperativo e não me lembro de ter escutado essa palavra, mas ela estava nas rezas do Shabat – na tardinha da sexta-feira –, no dia do descanso do Todo-poderoso, que criou o mundo em seis dias e no sétimo, sábado, descansou.

Para expressar sentimentos como o amor e a fé, se requer a poesia, assim como na vida poética brilham o entusiasmo, a dança, o canto e o espanto. A fé e o milagre marcam tanto o sagrado como o profano, são significantes com diferentes significados, são palavras com um caráter religioso ou profano.

Há anos me surpreendo com o milagre dos Andes, quando o avião uruguaio que transportava um time de rugby para o Chile, com amigos e familiares, caiu nas montanhas nevadas. Eu estava em Buenos Aires no final do ano de 1972, quando apareceram os sobreviventes, e os jornais foram ocupados pelo milagre e o canibalismo. Os anos se passaram até ler e reler o livro de Nando Parrado “Milagre nos Andes”. Queria aprender sobre como o ser humano foi capaz de sobreviver em temperatura muito abaixo de zero, em que a vida era impossível. Um grupo de jovens passou por 72 dias sendo obrigados, para sobreviver, a comer a carne de mortos. Essa ideia nasceu em Nando numa conversa com Carlitos, e aos poucos se espalhou, e foi decorrente de uma promessa que ele fez a si mesmo, ligada a seu pai. Imaginava o sofrimento paterno de perder a esposa e dois filhos que tanto amava e repetia a história dele, em que o pai numa competição de barco decidiu não desistir e sofrer um pouco mais para vencer e venceu. Nando prometeu a si mesmo que não morreria, que iria lutar sempre para voltar para casa e ver seu pai. Lutou para não chorar, pois as lágrimas são salgadas e o sal é essencial para se viver. Todos os dias fantasiava de como seria possível sair da montanha, mas gostava também de escutar, em especial a Arturo, que era um socialista fervoroso. Ele se interessava pelas questões de igualdade, justiça, compaixão e honestidade. Falaram sobre Deus, e Arturo disse que Ele simplesmente é, não muda, que somos parte de Deus. Nando falou de suas dúvidas, e o amigo de esquerda disse que é bom duvidar, é preciso coragem para questionar, mas que ele poderia encontrar Deus. Nando sentiu uma grande onda de afeto por Arturo e ficou marcado por suas palavras a ponto de escrever ainda: “Olhei para Arturo, aquele jovem socialista ardoroso deitado em sua rede com as pernas quebradas como gravetos e os olhos brilhando de fé e ânimo, e senti uma grande onda de afeto por ele. Suas palavras me tocaram profundamente”. Algumas vezes Nando disse a si mesmo sobre Arturo: “Eis um homem de verdade”.

No livro há referências à palavra milagre, como a forma que o avião tocou a barriga no pico de uma montanha e não oscilou ou entrou em espiral. O ângulo de descida do avião era igual ao do despenhadeiro, e por isso não capotou e deslizou na neve até bater e parar num pequeno monte de neve. Na queda do avião no dia 14 de outubro de 1972, Nando bateu forte sua cabeça e entrou em coma por três dias. Poderia ter morrido, se seu amigo Pancho não pedisse a ele para mudar de lugar pouco antes do acidente, e por isso Pancho morreu. É incrível como a sorte e o azar convivem, pois seu melhor amigo morreu, assim como sua mãe e sua irmã mais jovem. Muitos morreram na queda e umas duas semanas depois ocorreu uma avalanche de neve que matou oito pessoas. Nando quase morreu, ao ficar coberto de neve e não poder respirar, sentiu que morreria, quando foi salvo, pois puderam desenterrá-lo. Se tivesse morrido ali, é provável que não houvesse sobreviventes, porque foi ele que liderou o grupo dos expedicionários em busca de ajuda.

Nando tinha como obsessão a saída daquele verdadeiro inferno onde era impossível sobreviver por muito tempo. E a saída era subir uma grande montanha para então ir em busca de gente a quem pudessem contar que havia sobreviventes nos Andes. Pensou muito em quem convidaria, e logo lhe ocorreu que um deles deveria ser Roberto Canessa, o estudante de medicina, como um parceiro da aventura que poderia ser fatal. Tentaram uma vez subir a montanha e desistiram, pelas grandes dificuldades e pelo frio de menos quarenta graus à noite. Buscaram se preparar e inventaram uma espécie de saco de dormir de nylon do avião e costuraram para se proteger do terrível frio à noite. O grupo dos expedicionários estudou tudo sobre como sobreviver na montanha, e depois se alimentaram um pouquinho melhor que os outros da carne dos mortos. Esperaram dezembro, quando começava o verão, e aí seria melhor para escalar e ir em busca de ajuda.

O milagre é o filho favorito da fé, pois sem a fé de Nando de que devia ver seu pai para ajudá-lo diante de perdas tão sofridas, todos teriam morrido. Sua missão era sobreviver a qualquer custo, até de sua vida, e só nisso pensava dia e noite.

Lembrei-me de Telêmaco no início da Odisseia, que estava sem saber o que fazer na ausência do pai Odisseu, diante da luta de homens para casarem com sua mãe Penélope. A deusa Atenas disse a Telêmaco que ele saísse em busca de seu pai. Nando liderou uma das maiores odisseias da História tendo como objetivo encontrar seu pai, e conseguiu. Em ambas as histórias há um norte, uma fé a seguir, em busca de uma saída. O milagre nos Andes ocorreu porque Nando teve uma fé originada em seus ancestrais, assim como a capacidade de liderança, que nasceu após o acidente.

Estamos no fim do ano, o fim de um ciclo, tempo para lembrar a fé diante de um novo ano repleto de desafios pessoais e sociais. Avança no mundo uma onda ultraconservadora de muita crueldade, e é preciso algo do jovem Arturo de quem Nando Parrado tanto aprendeu, e que se possa também aprender. Lutar pela vida e por um mundo melhor é um caminho difícil, às vezes impossível, mas não convém desanimar. Imagino que os sonhadores de um mundo melhor são herdeiros dos profetas bíblicos, herdeiros de homens como o sábio dos sábios Hilel, que foi um dos mestres de Jesus Cristo. Sonhador também foi Tomás Morus, autor de “Utopia”. Todos esses são visionários de um mundo melhor e mais justo. Que todos possam se animar com seus sonhos tanto pessoais como sociais diante de caminhos difíceis, milagrosos, alimentando a fé. Relembrar o milagre dos Andes pode auxiliar na luta, assim como não se esquecer de outros lutadores de amor à vida, como o fantástico Padre Júlio Lancellotti. Ser um sonhador é fazer parte da história dos sonhadores, e assim viver uma vida poética com entusiasmo. (Publicado no Facebook do autor)

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Ilustração: Mihai Cauli e Revisão: Celia Bartone
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