Hoje, mais do que nunca, histórias continuam amealhando apoiadores, independentemente de serem baseadas em ideias estúpidas e destrutivas. Durante o longo período do colonialismo europeu, os impérios saquearam recursos das colônias e subjugaram seres humanos no trabalho insano em mineração, agricultura, construções, etc. Espalharam racismo, desumanização, arrogância, pretensa superioridade cultural e falsos conceitos sobre o progresso para justificar a continuada exploração das colônias. Justificavam que era imperioso competir com outros impérios. No século XX, as três histórias que dominaram o mundo foram o fascismo, o comunismo e o liberalismo. Nas últimas décadas, prevaleceu o liberalismo. E agora, a narrativa do liberalismo vem sendo ameaçada pelo nacionalismo e a xenofobia, que se opõem à migração e à globalização. Por incrível que pareça, os progressistas defendem hoje o livre comércio, enquanto os reacionários passaram a defender o protecionismo.

Com a recente divulgação do documento que explicita os objetivos e prioridades da Estratégia de Segurança Nacional (ESN) dos EUA, constata-se um aumento dos riscos e perigos impostos ao planeta. Os principais tópicos do documento deixam claro o caráter belicista, intervencionista e imperialista dos EUA.

Primeiramente, a nova versão da Estratégia de Segurança abandona o foco na ordem baseada em regras e na promoção universal de valores democráticos. Em vez disso, adota um princípio de “realismo flexível”, em que os EUA priorizam seus interesses nacionais concretos.

Em segundo lugar, a soberania nacional é central, e o documento explicitamente coloca os interesses dos EUA acima de compromissos multilaterais amplos. A versão da Estratégia  2025 redefine prioridades regionais atribuindo maior ênfase ao Hemisfério Ocidental (América Latina e Caribe) como área estratégica principal – inclusive com referência explícita a um “corolário à Doutrina Monroe” com contenção da influência e do poder militar da China na região.

A região do Indo-Pacífico continua relevante, mas a relação com a China é pautada mais em termos econômicos do que ideológicos, com clara estratégia de colocar a China como arena central de competição.

A Europa perde prioridade relativa, com a ênfase colocada em que os aliados europeus têm que assumir maior responsabilidade por sua própria segurança e rever suas políticas migratórias e culturais. O Oriente Médio é mencionado, mas não mais como o “centro” da política externa americana. Além disso, o documento também:

  • – considera a migração e integridade das fronteiras como pilares da segurança nacional;
  • – coloca os interesses nacionais acima da liderança global;
  • – foca no fortalecimento da indústria interna, nas cadeias de abastecimento críticas, no acesso a países/recursos estratégicos, com investimentos em inovação e segurança cibernética com vistas à manutenção da liderança tecnológica em áreas-chave como IA, biotecnologia e computação quântica;
  • – prioriza a proteção contra práticas econômicas coercitivas e diminuição da dependência excessiva de potências rivais;
  • – justifica a conquista da paz por meio da força (peace through strength) com clara intenção de deter adversários através do poder econômico e forças militares robustas e dissuasivas, inclusive com possível uso de sua capacidade nuclear;
  • – aponta para o estreitamento de alianças com países como Japão, Coreia e Austrália, proteção de rotas marítimas e cadeias de abastecimento;
  • – apresenta ceticismo quanto ao multilateralismo tradicional – alianças são tratadas de forma instrumental – ou seja, valorizadas somente quando servem diretamente aos interesses dos EUA.

Ninguém tem a capacidade de prever com exatidão o que acontecerá no futuro, mas é mandatório mapear as grandes ameaças que a humanidade terá de enfrentar. Dá para avistar os perigos e fazer os alertas cabíveis. Alguns deles, verdadeiramente ameaçadores, são:

  • Perda de confiança nos títulos do tesouro dos EUA e diminuição da importância internacional da moeda norte-americana, aumentando a dificuldade de rolagem da portentosa dívida pública dos EUA;
  • Inexorável mudança climática;
  • Perigo de guerra nuclear;
  • Avanço das tecnologias disruptivas tais como IA e bioengenharia capitaneadas pelas big techs, que não aceitam se sujeitar às regulações dos países.

A humanidade está sendo submetida a uma verdadeira narcose digital, além de extrema dependência das “hiperconectividades”. Agora, são os impérios da IA que passaram a dominar o planeta, apropriando-se ilegalmente do trabalho de artistas, escritores, pesquisadores, prestadores de serviços e de tantos outros que são diuturnamente monitorados, saqueados e manipulados pelas gigantes tecnológicas, sob o pretexto de se alcançar uma maior produtividade no contexto de uma inexorável nova modernidade e sua proteção contra ameaçadores impérios concorrentes. Nesse sentido, a IA pode e deve ser vista como uma nova ordem colonial no mundo, amparada por uma ilusória visão de progresso, cujos by products são as fake news, dogmas falaciosos e maior concentração de riqueza nas mãos dos poderosos.

Os que detêm as informações, acumulam poder. Dados passaram a ser o recurso mais valioso. E as informações fluem de todas as origens para os data centers e supercomputadores, que requerem quantidades exorbitantes de água e energia para seu funcionamento. E os detentores das informações passam a conhecer cada vez mais os seres humanos a ponto de manipulá-los econômica e politicamente. Trata-se de uma hierarquia, em que a IA é o guarda-chuva, o aprendizado de máquina (machine learning) é uma parte central da IA onde algoritmos aprendem com dados para encontrar padrões e tomar decisões e o aprendizado profundo (deep learning) é um subconjunto especializado da machine learning que usa redes neurais artificiais complexas e multicamadas – inspiradas no cérebro humano – para aprender com grandes quantidades de dados, extraindo características automaticamente e realizando tarefas como reconhecimento de imagem/fala com mínima intervenção humana.

Definitivamente, não são tais caminhos que nos levarão à inclusão social e ao progresso. Muito ao contrário, o que paira no ar é o alijamento de grande parte da humanidade que, não conseguindo participar da revolução tecnológica, tornar-se-á irrelevante, o que é pior do que ser explorada. O mundo necessita de mais saúde, educação, despoluição, efetiva transição energética, coesão e cooperação global, conceitos ausentes nas “visões” oligopolistas da inteligência artificial.

Contudo, a inteligência artificial só será capaz de rentabilizar seus investimentos e transformar profundamente as economias com a introdução de tecnologias disruptivas cada vez mais avançadas, quando for alcançada uma profunda e efetiva combinação entre a biotech (entendimento do corpo humano e das funções cerebrais) e a infotech (que é o armazenamento do conhecimento e informações e seu uso em computadores). E esse estágio ainda não foi alcançado. Até lá bolhas financeiras vão se formando, retratando o processo doentio da sobrevalorização de ativos a qualquer preço.

A inteligência artificial só será efetiva se alcançar um estágio avançado de entendimento das emoções e do comportamento humano. Caso contrário, ficará restrita ao acúmulo de informações do passado, sem lograr passar ao estágio das máquinas inteligentes, que efetivamente funcionariam, como muitos acreditam, com base em modelos baseados em comportamentos humanos.

Muitos creem que a IA nunca poderia produzir um médico eficiente já que a máquina não conseguiria levar em consideração os medos, a depressão, a raiva, enfim, as emoções no contexto do diagnóstico. Outros pensam ao contrário, já que todas essas manifestações são padrões bioquímicos, da mesma forma que uma gripe ou um câncer. E acreditam que o fato de a máquina não ter emoções pode até ser um ponto a seu favor, já que o diagnóstico tenderia a ser mais objetivo.

Muitas das tecnologias disruptivas já estão aparecendo: e-commerce, o vídeo on demand, o ensino à distância, a automação residencial, os meios de pagamento digitais, etc.

Outros, como o blockchain (livro-razão digital que registra transações com segurança e transparência sem a necessidade da intermediação de bancos), os veículos autônomos, a realidade virtual aumentada, a internet das coisas, ainda são apenas desejos e sonhos que ainda não são totalmente viáveis.

Toda vez que acontece uma revolução tecnológica, as pessoas se enredam ou no apocalipse ou no triunfalismo. De fato, há sempre um meio termo, um caminho do meio. Não há razão para se perder de vez a esperança na raça humana, apesar de sua capacidade de atenção estar sendo fragmentada a passos largos, atingindo grande parte das pessoas viciadas nas redes, que estão perdendo a capacidade de leitura e de crítica.

As saídas para os impasses do planeta apontam para a confiança mútua, a proteção do meio ambiente, uma rede de segurança global e a regulação da IA e da bio engineering. Basta poder, querer e saber…

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Os artigos representam a opinião dos autores e não necessariamente do Conselho Editorial do Terapia Política. 

Ilustração: Mihai Cauli e Revisão: Celia Bartone
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