
A camisa amarela da Seleção Brasileira rodopiava sobre a cabeça, agarrada por uma mão fechada lembrando vagamente o gesto dos Panteras Negras americanos dos anos 60, só que sem uma mão negra. A expressão não era de torcedor, mas a de guerreiro medieval a demonstrar fúria gritada para intimidar o inimigo e, ao mesmo tempo, encorajar-se para a iminente refrega sangrenta. Da boca aberta, de dentes brancos e alinhados por anos de ortodontia, repetia as palavras de ordem que eram entoadas por uma espécie de animador de passeata que se esforçava para estourar as caixas de som de um trio elétrico.
Uma delas provocou na massa uma reação estranha. O PT acabou com a minha vida! Disse umas dez vezes seguidas. As pessoas repetiam, gritavam, xingavam. Era a frase mais forte. Catártica, resumia todas as outras e aglutinava os afetos da massa na Avenida Paulista.
Naquele momento da história, Dilma presidia o país a trancos e barrancos. O processo de impeachment corria na Câmara. Lula ainda não conhecia a carceragem da PF de Curitiba, mas já se especulava sobre a possibilidade. Brasil a fora, manifestações amarelas pedindo impeachment se revezavam com manifestações vermelhas denunciando golpe de Estado.
Nos jornais e nas redes, dificilmente se passava um dia sem que houvesse alguma notícia ou comentário sobre Operação Lava-Jato e PT. Falar de um sem o outro, era estranho. Como goiabada com queijo sem goiabada. Peças essenciais do mesmo enredo com cenas ora trágicas, ora cômicas.
Causa e efeito os uniria. A Lava-Jato só existiria por causa do PT. Não só isso, ele seria a causa de todos os outros males do mundo. Como se dentro da caixa de Pandora houvesse apenas a esperança e o PT. A corrupção? Inventada pelo PT. Faltam hospitais? Coisa do PT. Crimes? Ah, o PT!… Todo ódio que se é capaz de nutrir por coisas odiosas como a desigualdade, a fome, os roubos, os assassinatos ou a corrupção ganhou uma só imagem, um só rosto: Lula e o PT.
Quem dera fosse assim! Uma causa e uma solução para todos os problemas. Pensamento ingênuo, mas forte o bastante para mover multidões às ruas, redes e urnas. Intenso o bastante para transformar amigos e parentes até então amados e protegidos em odiados petistas só porque não se convenceram da legalidade do impeachment, não achavam que Sérgio Moro devesse ser canonizado ou coisas assim. Todos petistas, mesmo que jamais tenham votado em um candidato do PT.
A razão não tem tanta força. Todo pensador ao longo da história esforçou-se por entregar à humanidade razões que pudessem transformar o mundo. Por melhor que tenham pensado e escrito, nenhum conseguiu. Se dizemos, por exemplo, que o século XIX foi hegeliano, é muito mais porque se acredita que a obra de Hegel nos explica bem um tempo que não vivemos do que por acreditar que o século XIX foi como foi porque todo mundo leu Hegel (o que é improvável), entendeu (improbabilíssimo) e ainda por cima achou legal.
O que nos movem são os sentimentos e o que nos movem intensamente são as emoções. Os dois espécies do gênero afeto. A ambição, o amor e o ódio nos dão muito mais porquês da História do que belas ideias. Estas, sem o combustível afetivo, não decolam. Já os afetos, podem viver muito bem sem razões. Se precisarem de uma para se tornarem sociáveis, criam ou se apropriam da que estiver dando sopa por aí.
Aquele fim de tarde fria na Avenida Paulista reuniu gente cheia de ódio. Gritavam contra o PT, as esquerdas, o feminismo, a Dilma. Mas estes eram apenas o objeto de seu ódio. Algo que lhe dá significado e, confusamente, é tomado como causa do ódio que já estava lá muito antes.
Nosso ódio é ancestral. Já estava por aí antes da manifestação, antes do Mensalão, antes até da Paulista ser uma avenida. Ele é nutrido há tempos pelo açoite do senhor de engenho nos escravos. Pelo fim sangrento de todo e qualquer movimento realmente popular, como Palmares. Pela expressão de nojo de senhores e madames quando a empregada entra no elevador social. Pelas mulheres espancadas e mortas por machos inseguros e covardes. Pelo juiz que manda prender o guarda que lhe aplica, corretamente, uma multa.
Nosso ódio nasceu das incertezas dessa terra que, apesar de em se plantando, tudo dá, o que aqui se planta não é dado para todos. No lugar de um regime constitucional, vivemos há muito um regime de indefinição onde o pau que bate em Chico hoje, deve estar desvinculado de qualquer valor ou princípio para que possa poupar Francisco amanhã. Útil aos malabarismos processuais e políticos que uns chamam de justiça e outros, de realidade.
Incertezas são terríveis, não lidamos bem com elas. Desde a infância, é na incerteza da escuridão que nossa imaginação desenvolve os medos mais medonhos. Para outras crianças, nem é necessário o escuro. A incerteza sobre o afeto e proteção já lhe conforma os medos no prenúncio de violências muito piores do que um Bicho Papão poderia causar.
O medo é filho da incerteza e irmão da esperança. A árvore genealógica de nosso ódio se completa com o verso de Chico Buarque: A raiva é filha do medo e pai da covardia. A incerteza nos faz viver com aquele frio na barriga de quem tenta correr no piso molhado em volta da piscina. Alguns aceleram, na esperança de não caírem. Confiam no próprio equilíbrio. Outros tremem, amedrontados pela possível estatelada no chão.
Nossa história registra momentos de prevalência da esperança. Clima de “agora vai!”. Em outros tempos, como estes que estamos a viver, prevalece o medo. Qualquer humano reage ao medo de três formas. Alguns ficam paralisados. Outros fogem. Outros tantos, atacam enfurecidos.
Manifestações amarelas espalhadas pelo Brasil, nas ruas e nas redes. Com patos de borracha, bonecos infláveis de seus ícones amados ou odiados. Notícias falsas, textos sem nexo, sentido ou direção. Todos são exemplares atitudes daqueles que afetados de medo, atacam. Observados em suas panaceias por entristecidos e paralisados amedrontados. Em meio a outros tantos amedrontados cuja fuga se faz por adesão (para não apanhar), pela alienação ou pelo aeroporto mesmo. De mala e cuia.
A massa amarela daquele fim de tarde frio e úmido gritava pelo Brasil. Patriotas somos nós e não eles. Nós amamos o Brasil. Eles não amam. Querem apenas se aproveitar do Brasil. Roubar o Brasil. Dominar o Brasil. Fazer do Brasil uma Venezuela, diziam aos gritos. O Brasil cujo amor cantavam, tem como condição eliminar todos os que não amam. Eles são causa do mal. O PT e todos os petistas, comunistas, gayzistas, feministas e por aí vai.
O Brasil que amam, não é o Brasil de fato. No Brasil tem gente de tudo quanto é tipo e jeito. Tem rico, pobre. Preto, branco, amarelo, índio e não me espantaria se aparecesse alguém azul. Tem homo, hétero, bi, tri, cis, pan e outras tantas letras que tentam classificar uma diversidade muito maior que o alfabeto.
O Brasil que querem defender com a vida (suponho que dos outros) existe apenas em seus ideais. Como o ariano prototípico do humano superior existia apenas nos perigosos devaneios nazistas. Querem o Brazil porque odeiam o Brasil e, principalmente, os brasileiros de carne, osso e diferenças que o habitam.
Houve um momento, não faz muito tempo, em que todo mundo queria ser brasileiro. Efeito de nossa imagem propagada mundo à fora. Do brasileiro cordial, cheio dos ziriguiduns e telecotecos. Espírito forte de um Zé Carioca que leva a vida na flauta e não se lamenta das desgraças à sua volta. Tempos outros. Hoje, ninguém quer ser brasileiro. Nem mesmo os brasileiros.
Boa parte dos brasileiros nunca quis ser brasileiro. Sente inveja dos outros povos e países. Das coisas às ideias e pensadores, o que é bom vem de fora. Possuem em grau patológico o complexo de vira-latas. Esse narcisismo às avessas tão bem apontado por Nelson Rodrigues. É um brasileiro que fala de brasileiros na terceira pessoa: esses brasileiros não tem jeito… Patriota que coloca as bandeirinhas de Israel e Estados Unidos nos perfis de redes sociais. Nega o ódio que sente e odeia quem denuncia o ódio que destila. Vê em si um brasileiro cordial. Apesar de toda virulência e falta de polidez que leva para as ruas e, principalmente, para as redes.
A ideia do brasileiro como um homem cordial, descrita com sutileza e precisão por Sérgio Buarque de Holanda em Raízes do Brasil, é muito mais a epiderme social que ocultava, sob o manto de polidez e “bom-gentismo”, a brutalidade de uma sociedade desigual, familiar e patriarcal.
Bom, parece que o medo (ou o ressentimento, não sei ao certo) arrancou-nos a pele cordial. Ficou só o ódio. Carnal e sanguíneo. Desavergonhado. Irracional. Coberto com uma camisa amarela.






