Uma conjuntura difícil no curto prazo e de mudanças importantes no médio e longo prazo
O objetivo deste artigo é pensar o futuro que se abre a partir da dupla crise internacional – a crise de saúde, a crise econômica e a financeira. A entrada no ano de 2020 já não apontava um cenário róseo para o Brasil e o mundo, mesmo antes do que poderíamos chamar agora de “Corona-crise”. O ano seria não apenas marcado pela continuidade das tensões políticas entre os EUA e a China, em um quadro em que se teria que observar os impactos do processo eleitoral em curso nos EUA sobre essas tensões, agravando ou não a situação já existente, dependendo dos rumos da campanha. Além disso, já era esperada uma desaceleração econômica na própria China, resultado das pressões internas por uma solução para os problemas ambientais graves no país. Esse quadro na China afetaria fortemente o conjunto dos países da Ásia, em especial resultando em efeitos desaceleradores sobre os mais diretamente encadeados produtivamente com a China, como Coreia do Sul, Japão, Taiwan, Vietnã e outros (aqui não se incluiria a Índia).
O quadro europeu também era repleto de incertezas, não apenas pelas dúvidas sobre como se daria de fato a separação entre a União Europeia e o Reino Unido, o chamado “Brexit”, mas também por uma grande indefinição sobre os rumos econômicos do bloco, com forte aposta em uma desaceleração econômica na região, a menos que fortes medidas de ampliação do consumo fossem levadas a cabo pela Alemanha. Esta, no entanto, não só não parecia ter disposição para uma ação nesse sentido, como também passava por um período de forte crise de liderança interna, que parecia se seguir ao desenhado “fim da Era Merkel”.
No caso da América Latina, as turbulências políticas que atingiram fortemente a região no segundo semestre de 2019 já indicavam um cenário de incertezas acentuadas, sobretudo em um momento de aversão a riscos no mercado financeiro mundial, com a fuga de capitais aplicados nos países da região, flutuações e volatilidade financeira – associadas a quedas no mercado de ações, e variações agudas nos preços de commodities exportadas e no valor das moedas da região (volatilidade no mercado de câmbio). A volta de negociações com o FMI por vários países na região (Argentina, Equador) acentuava esses movimentos.
Além desses problemas, o mundo financeiro parecia em um compasso de espera. As previsões de crescimento da economia mundial já ao final de 2019 tinham se reduzido bastante, não apenas pelas principais agências financeiras internacionais, como o FMI, mas também pelos investidores nos mercados financeiros e suas principais assessorias. O mercado financeiro, viciado em dinheiro barato especialmente nos anos de expansão monetária (políticas de “quantitative easing” pelos principais bancos centrais do mundo), via com temor qualquer possibilidade de aumento de taxas de juros, e tinha começado a reagir com “mudanças de posição” (vendendo possibilidades mais arriscadas, como mercado de ações, buscando aplicações mais seguras, como o mercado de títulos públicos, mesmo com rentabilidade baixa ou negativa – a busca de rentabilidade negativa não tem nada de irracional, é uma conta simples face às possibilidades de perdas nos mercados de maior risco).
Alguns especialistas apontavam que as análises em 2020 levariam em consideração não apenas as políticas de juros dos principais bancos centrais e a expansão monetária, como o real desempenho das empresas e dos vários mercados. Com base nisso, analistas apontavam datas para a eclosão de uma grande crise financeira, que iam de março a outubro de 2020, dependendo do otimismo de cada um sobre o desempenho das empresas e as políticas dos bancos centrais, especialmente o FED, o banco central dos EUA, que, preocupado com a situação e sob pressão do Governo Trump (este também com um olho no calendário eleitoral naquele país), já tinha ao final do ano passado revisto sua política de elevação lenta e gradual das taxas de juros.
No caso do Brasil, os números divulgados no começo de 2020, referentes ao desempenho no final de 2019, já tinham consolidado um quadro de mais um ano de estagnação no país, com o desempenho de 2019 muito próximo aos de 2018 e 2017. Assim, depois de um ano de discurso ufanista com o crescimento da economia brasileira que não mostrou aderência à realidade, os porta-vozes do governo, e os analistas chapa-branca, em especial os vinculados ao mercado financeiro, já tinham voltado suas análises otimistas para o ano de 2020 com um discurso positivo que apontava (como no começo dos anos de 2017, 2018 e 2019…) para uma taxa de crescimento do PIB entre 2,5% e 3%.
Antes da crise do Coronavírus, em agosto de 2019, Nouriel Roubini, um dos analistas que colocou em seu radar a crise financeira e econômica de 2008, publicou artigo anunciando uma nova crise em 2020. Em realidade, não apenas Roubini, mas vários especialistas acompanhando o mercado financeiro vislumbravam que, depois de uma década movido pelas políticas de expansão monetária, com os balanços das grandes corporações financeiras artificialmente inflados pelo crédito farto e barato, qualquer ruído poderia levar a uma crise de grandes proporções, e “gatilhos” não faltariam ao longo de 2020 – seja o conflito geopolítico China/EUA, as novidades e a evolução do processo eleitoral nos EUA, os desdobramentos concretos do “Brexit”, ou uma complexa renegociação de um grande devedor com seus credores (o cenário estava armado para o processo de negociação da dívida externa argentina, iniciado com as negociações entre o governo argentino e o FMI). Acabou que outros gatilhos dispararam a crise financeira que estava desenhada – o aparecimento do Coronavírus com a crise de saúde, e a queda de braço entre Arábia Saudita e Rússia a respeito dos preços do petróleo. Independente do gatilho, o fato é que estava armada uma crise financeira de largas proporções, e que deveria eclodir independente da crise sanitária.
Assim, já antes de se explicitar a “Corona-crise”, as perspectivas já eram de um ano difícil, com redução das taxas de crescimento nas principais economias, dificuldades no comércio internacional e turbulências financeiras.
Com a vinda à superfície da crise sanitária a partir do começo do ano, ficou meio evidente que nada seria como antes. A começar pela China, onde primeiro se evidencia a Corona-crise. O efeito imediato da adoção de medidas de confinamento e isolamento social, única forma de frear o contágio a níveis administráveis para a estrutura hospitalar efetivamente existente, trava os circuitos nacionais (na China) e internacionais de produção e consumo.
Como em 2008, quando todos os que começaram a refletir sobre como superar a crise viraram de uma hora para a outra keynesianos de quatro costados, a experiência não deve ser repetida pelos Estados nacionais, já que a crise anterior repassou a maior parte do problema para os pagadores de impostos e setores dependentes de serviços públicos. De toda forma, analistas apontam recuos do PIB nas principais economias (à exceção da China) da ordem de 5% a 10%, talvez mais. A OMC (Organização Mundial do Comércio) fala de um recuo do comércio internacional em cerca de um terço (33%).
À pandemia e seus efeitos deve se somar o pandemônio financeiro que está apenas começando. Até aqui, desabaram o mercado de ações, de commodities, e existe forte especulação nos mercados cambiais e de títulos de países e empresas. Essas turbulências, hoje meio obscurecidas pela Corona-crise, devem voltar ao primeiro plano assim que os efeitos da pandemia e os caminhos para sua superação comecem a ficar mais claros. Nesse quadro, é bastante curiosa a contraposição que se faz no debate entre salvar vidas e salvar a economia. Focar na economia não salvará o desempenho econômico, uma vez que a crise financeira, como mostrado, já está “contratada” e em curso. Focar na crise da saúde, em salvar vidas, pode inclusive ajudar a saída da explosão do mundo financeiro, uma vez que não só “esconde” por um tempo a profundidade da crise financeira, como ao justificar todo e qualquer gasto para tentar salvar vidas humanas, abre o caminho para justificar um brutal aumento do gasto público que pode ajudar a salvar a quebra das grandes corporações financeiras.
O agravamento da crise no curto e no médio prazo já é uma realidade. A disputa da narrativa nos mercados financeiros é, a partir da realidade da crise sanitária e da crise financeira combinadas, qual o caminho para a recuperação e quanto isso custará em termos de tempo, custos e mudanças que serão operadas no sistema. Em um quadro em que todas as incertezas políticas estão colocadas, provavelmente as mudanças serão bastante radicais a partir daqui, não apenas com a busca de novas regulações, como também com uma introdução rápida de novas tecnologias que já estavam disponíveis, mas que até aqui vinham tendo a sua introdução de forma massiva colocada em discussão.
A situação brasileira: a galinha manca abatida em plena tentativa de mais um voo
Antes de entrar nos efeitos da crise internacional sobre o Brasil, é preciso esclarecer a narrativa do governo brasileiro sobre o crescimento. Apesar de, pela avaliação dos membros da equipe econômica do Governo Federal, o Brasil estar prestes a entrar em uma rota de crescimento, não era exatamente desta forma que a “banda tocava”. O primeiro ano do Governo Federal sob a gestão de Paulo Guedes na economia teve, segundo dados preliminares até aqui divulgados, pior desempenho do que os dois anos anteriores de Governo Temer, quando a economia ficara estagnada, crescendo cerca de 1,3% ao ano entre 2017 e 2018 (similar ao crescimento da população, e portanto com um PIB per capita estagnado). Em 2019 esse desempenho a princípio caiu para 1,1%, ou seja, não houve qualquer decolagem.
Os sinais de regressão industrial no final do ano passado e início desse ano, além de que os números do comércio não apontaram crescimento sustentado, continuando em momentos de crescimento e outros de retração, mostravam já antes da crise do Coronavírus e da turbulência financeira que as perspectivas não eram das melhores, e no máximo teríamos outro ano de estagnação, ou na mais feliz das situações, mais uma tentativa de crescimento frustrada, outro “voo de galinha”, dessa vez de uma “galinha manca” que nem chegaria a alçar um desempenho muito significativo. Ou seja, mais do mesmo, pois o desempenho similar ao dos últimos três anos já era o que esperavam os analistas mais realistas no começo de fevereiro, nada a ver com qualquer narrativa de decolagem. A partir daí, a Corona-crise, a queda dos preços das commodities e as turbulências financeiras (além de, no nosso caso, uma forte desvalorização do real, que rapidamente vai para mais de R$ 5,00 por cada dólar estadunidense) abatem qualquer perspectiva de voo de nossa economia.
A travada da economia brasileira vai ser aguda e de um prazo longo, já que não tínhamos antes qualquer perspectiva de melhora, e o agravamento da dependência de exportação de commodities ainda dificulta nossa situação.
Importantes tensões políticas vão se explicitar como resultado da Corona-crise. Há cerca de um mês, o presidente francês Emmanuel Macron disse com todas as letras que “saúde não é mercadoria”, e que portanto não poderia ser tratada de acordo com as chamadas leis de mercado. Isso vale para quase todo lugar do mundo, e contrasta com o que vinha sendo negociado na área de serviços dos acordos comerciais em discussão ou já discutidos, em que saúde, assim como educação, água e saneamento e outros serviços são tratados exatamente como mercadoria. O mesmo vale para as discussões de propriedade intelectual nestes mesmos acordos – nesse momento, levar adiante todas as restrições relacionadas à propriedade intelectual nos acordos comerciais e todas as garantias relativas a patentes já existentes, significaria dificultar substancialmente o desenvolvimento de medicamentos para o tratamento da pandemia. A própria polêmica a respeito da cloroquina e medicamentos aparentados fortalece uma grande corporação transnacional farmacêutica, detentora da patente do remédio, e que, portanto, pode ver o valor de suas ações explodirem se o medicamento é referendado por governos e/ou OMS. Mais uma vez, a contradição entre as grandes corporações globais, seus lucros financeirizados e a democratização do acesso aos medicamentos e serviços de saúde estará colocada. A efetivação de posições como a de Macron, nesse momento, significaria uma forte revisão política dos acordos comerciais vigentes ou sendo negociados. Vamos ver até que ponto os políticos falam nesse momento para um eleitorado desesperado com a pandemia, e até que ponto os velhos interesses comerciais, o “business as usual” (os negócios, como sempre) prevalecem.
Outro fio desencapado diz respeito a como se dará o enfrentamento da crise financeira e da crise econômica. Os mercados financeiros, adictos ao crédito farto e barato, pedem novos cacifes garantidos pelos Estados nacionais para seguirem o processo especulativo e ganhando dinheiro com esse processo. Os Estados nacionais, premidos agora por parlamentos e eleitores que ainda estão pagando o processo de 12 anos atrás de salvamento das grandes corporações financeiras, colocam restrições a fazerem as mesmas operações do passado, embora agora haja a urgência do problema de saúde e das mortes determinando a aprovação de gastos milionários. A disputa vai se dar na sequência, quem paga a conta. Até fevereiro, os técnicos do FMI, por exemplo, seguiam insistindo que na maioria dos países não existiria “espaço fiscal” para promover gastos. Evidenciado o tamanho do problema de saúde, pouco depois que a crise se apoderou rápida e dramaticamente dos países europeus, Itália à frente, a diretora-gerente do FMI, a búlgara Kristalina Georgieva, garantia que o mais importante agora era salvar as pessoas, e em seguida salvar as economias, e que os aspectos fiscais seriam discutidos na sequência. Por todos os cantos, velhos e sólidos economistas liberais e fiscalistas viraram arraigados keynesianos, e quase todos passam a advogar o saque a descoberto, financiando programas de saúde e de recuperação econômica com emissões de moeda e/ou dívida. Vale lembrar que poucos países têm moeda conversível internacionalmente para fazer isso sem problemas, e para os demais, o passo seguinte vai ser a adoção de mecanismos de controle de capitais, caso contrário a fuga de capitais e a especulação contra as taxas de câmbio serão mais um elemento de turbulência em futuro próximo.
Outro aspecto importante é que a crise recente e a busca de salvaguardar na crise os mais pobres chamaram a atenção para a fragilização das relações de trabalho e das relações sociais na maior parte dos países, e os limites dos estados de bem-estar social ainda existentes, muitos deles sendo desmontados pelos anos de liberalismo. A saída agora passa por aprofundar políticas sociais de garantia de cidadania (“renda cidadã”, por exemplo) e sistemas de proteção social, entre os quais os da área de saúde. A explosão das taxas de desemprego sem a devida proteção é gravíssima na crise atual, e condena setores expressivos da população ao dilema doença ou renda. A riqueza seguiu se expandindo, mas seguiu se concentrando. Talvez o 1% mais rico consiga escapar de alguma forma da crise atual, à custa de uma fragilização ainda maior da população mais pobre. Essa contradição entre democracia e distribuição de renda é sustentável? Se os pobres são a ampla maioria, porque não viram o jogo? Ou a atual regulação das grandes corporações em um sistema supranacional impõe tantas limitações aos espaços de decisão nacionais que pouco há a fazer, a não ser se conformar? Se for isso, o nacionalismo vai ressurgir feroz.
Talvez seja importante pensar também em algumas mudanças estruturais que já estavam em curso, e que talvez sejam aprofundadas com a crise atual. A primeira diz respeito à aceleração de introdução de inovações possibilitadas pelos avanços da economia digital. Deste ponto de vista, em função das medidas de isolamento social, o recurso imediato a uma série de mecanismos de trabalho doméstico, e produção e venda online, deslanchado com a Corona-crise, deve ter vindo para ficar em certa medida. Pode significar redução de custos para as empresas, mais tempo com a família e menos gasto de recursos (tempo, dinheiro) com deslocamentos para as pessoas. Talvez possa ser expandido, talvez tenha limites, mas seguramente será um ponto de agenda de implementação no próximo período.
Outro ponto importante é a continuidade de uma disputa geopolítica mais aberta entre EUA e China. Esse ponto, que ficou evidente na crise de 12 anos atrás, seguirá se aprofundando, em que os EUA aparecem como o país que progressivamente perde sua condição de hegemônico, e a China vem abrindo espaço para disputar essa hegemonia. Entretanto, o período recente, e em especial a “alternativa Trump”, mostra que os EUA não parecem dispostos a passar o bastão sem luta.
Finalmente, uma mudança importante nesta conjuntura foi o novo reconhecimento de um papel mais ativo dos Estados nacionais. Eles aparecem com força tanto na disputa geopolítica em curso, como nas intervenções possíveis para debelar a crise atual, quer nos seus componentes sanitários, quer nos seus componentes financeiros e econômicos. O retorno do Estado como instrumento fundamental de regulação, garantia das políticas de mínimos sociais, como elemento importante de redistribuição e de ativação da economia através de gastos, na velha visão keynesiana, é fundamental para repensar nesse momento a saída da crise. O Estado nacional se relegitimou com a crise, novamente, mostrando-se como elemento ainda fundamental para respostas econômicas, políticas e sociais.
Conclusão
Estamos ainda no começo de uma crise estrutural de grandes proporções. É provável um aprofundamento da crise na saúde e na economia. Por outro lado, o debate político e filosófico estará avançando, como uma disputa, nesse período. Portanto, estamos provavelmente no início desse debate, mas ele deverá se aprofundar tão mais longo seja o período de isolamento social, e a possibilidade de o isolamento com idas e vindas ser intermitente.
Por outro lado, o cenário que temos hoje já não é o que tínhamos há dois meses. O mundo mudou muito rápido e a agenda de discussão no cenário global também se alterou rapidamente. Assim, as saídas para as crises combinadas que temos hoje exigem dos formuladores pensar fora das caixas de ferramentas ideológicas com as quais nos acostumamos.
No caso específico do Brasil, a crise nos dá mais uma chance de repensar uma estratégia nacional de desenvolvimento. Temos perdido essas possibilidades, e na arapuca em que nos metemos nos últimos cinco anos, parece absolutamente incrível que a história tenha nos dado uma nova chance de repensar positivamente o nosso futuro como nação, e não nos fixarmos em “vendetas” políticas e nostalgias do passado autoritário. Resta ver se dessa vez levamos a sério uma nova chance de construir um país mais social e menos desigual.