Final da manhã. Consulto o celular: a caixa de mensagem estava cheia. Todas anunciavam a morte do professor Carlos Lessa. Começo a lembrar de passagens da minha vida com ele. Em seguida, sabedor da minha convivência com o referido Lessa, o também professor e amigo Cezar Guedes sugere que eu escreva algo de sorte a homenageá-lo. Acolho a ideia. O professor Lessa merece. Sua grandeza como cidadão e o valor da sua contribuição intelectual justificam o desafio.

Meu primeiro contato com o professor ora homenageado se deu na condição de aluno no mestrado em Economia da Unicamp-SP. Excelente professor, ele nos desafiava permanente a construir nossas próprias questões. E isso, claro, é inestimável para quem ainda estava começando a sedimentar sua formação acadêmica. Terminado os créditos disciplinares pedi a ele que orientasse a elaboração da minha dissertação. Dificilmente poderia haver escolha melhor. A atenção e a contribuição que dele recebi durante aproximadamente um ano estão e estarão sempre vivas na minha memória. Sem essa orientação talvez a minha carreira e vida tivessem tomado um rumo distinto. Enfim, o sentimento é de dívida eterna. Anos depois voltamos a nos encontrar em dois momentos especiais: na banca de defesa da minha tese de doutorado na mesma Unicamp, na qual ele foi um dos examinadores; e, na velha Economia UFRJ, então como colegas de trabalho. Nenhum reparo (antes pelo contrário).

Um segundo aspecto a destacar diz respeito à sua origem social. Ele mesmo se dizia ter um relativamente abastado numa aristocracia culta. Isso lhe permitiu precocemente acessar o que de melhor essa sua condição podia oferecer em termos de livros, obras de arte etc. Possivelmente daí derive sua capacidade ímpar de articular saberes das mais variadas disciplinas e campos do conhecimento; e, consequentemente, sua singularização enquanto economista. É dizer: esse “background” lhe permitiu romper com o ‘isolacionismo’ das caixinhas disciplinares aliás, presente em toda a chamada área de humanas. Outra dimensão a sublinhar diz respeito, ainda tendo em vista a apontada origem social, ao fato dele não ter sido encerrado em uma redoma. Ao reverso, pois desde cedo (graças à sua mãe) ele pôde interagir com os desvalidos, os excluídos etc. Nesses termos, o contato com aqueles que a máquina de iniqüidade social chamada Brasil produz cotidianamente lhe permitiu ainda jovem definir qual seria o seu lado nas grandes lutas históricas nacionais. Não é à toa que ele era capaz de dissertar por horas sobre catadores de lixo, por exemplo, chamando atenção para a capacidade criativa e transformadora do povo brasileiro, apontando assim, em coro com outros mestres do pensamento social do país, para a possibilidade de uma civilização única no planeta, a brasileira. Seu bom nacionalismo escorria em seus escritos, palestras e conversas do dia a dia.

Imprescindível fazer ainda referência à sua extraordinária e fecunda obra intelectual. Entendo que a menção ao texto Quinze anos de política econômica no Brasil, obra escrita quando ele ainda sequer tinha 30 anos, é digna de nota. Virou clássico. Outro trabalho extraordinário da sua lavra é A estratégia de desenvolvimento 1974-76: II PND – sonho e fracasso. Este texto, dando seguimento à linha do exame da política econômica, contribui decisivamente para a apreensão de nós fundamentais e estruturais da economia brasileira (e não apenas daquele momento). Sublinho ainda sua tese de doutorado intitulada O conceito de política econômica: ciência ou ideologia? Nela, o professor Lessa revisita praticamente todas as grandes obras e autores clássicos da economia (e não apenas), demonstrando ali seu acúmulo reflexivo e criativo maduros. Sublinho por último, e não por acaso, o livro Rio de Todos os Brasis, um marco não somente na obra do autor, mas na historiografia sobre a cidade do Rio de Janeiro – trabalho apaixonante e apaixonado sobre os dilemas e as possibilidades do Rio, quer de “per se” quer para o próprio país.

Por fim, ressalto sua veia bem humorada que a todos contagiava seja em sala de aula seja fora dela e que certamente foi poderosa aliada da sua verve calorosa em defesa do soerguimento do Rio e da construção de um projeto nacional/soberano de desenvolvimento.Viva Carlos Lessa, o professor magistral e o intérprete por excelência das ‘coisas’ do Rio e do Brasil.