Esse artigo se propõe a ser o primeiro de uma série sobre o Sistema Único de Saúde (SUS), visando disseminar o mais amplamente possível o conhecimento sobre sua importância fundamental para a sociedade brasileira, suas origens, sucessos, decadência, problemas e soluções, com o objetivo de construirmos um SUS de qualidade e para todos, superando-se definitivamente o “SUS Pobre para os Pobres” em que se transformou ao longo dos anos, desde sua criação na Constituição Federal de 1988 (CF/88), e do qual dependem cerca de 160 milhões de cidadãos e cidadãs que não possuem planos de saúde privados.
Como será visto, tal objetivo é de grande relevância para quem, como os responsáveis e colaboradores do site “Terapia Política”, se propõe construir “um país democrático e menos desigual”, ou como prefiro, um país democrático e igualitário.
Na verdade esta série, embora tendo no SUS seu foco central, pretende também abordar outras políticas públicas sociais, como a Educação, que, como veremos, em seus níveis infantil, fundamental e médio guarda diversas semelhanças estruturais com o SUS e problemas e limitações semelhantes.
Inicialmente, é fundamental nos perguntarmos se o conhecimento de detalhes do SUS, de sua importância, de suas qualidades e de seus gravíssimos problemas é relevante no momento histórico que vivemos, quando se sabe que todas as forças devem ser dirigidas à luta contra o fascismo mais corrupto e violento que, desde o longo processo de impedimento de Dilma Rousseff (02.12.2015 a 31.08.2016), e em particular nas eleições presidenciais de 2018, empolgou o poder e vem promovendo contrarreformas que retiram direitos políticos, sociais e humanos, e impõem os objetivos do capital financeiro rentista internacional e de seus aliados nacionais.
Este processo impôs uma imensa derrota à esquerda e ao centro progressista, bem como ampliou sua fragmentação. Por isto, quando se propõe o enfrentamento de questões setoriais, como o tema desta série de artigos, muitos se perguntam se, ao contrário, não é o caso de juntarmos forças no desenho e implementação da luta mais ampla contra o avanço do fascismo, em busca de uma democracia realmente participativa que privilegie as políticas sociais.
Entretanto, esta é uma falsa dicotomia, pois o processo político mais amplo é, dialeticamente, causa e resultado do que ocorre nas lutas políticas setoriais. E os detalhes das políticas sociais constituem um lugar privilegiado para que se identifique as forças e fraquezas de uma sociedade na luta por desenharmos um país democrático e igualitário.
Nesta perspectiva, é possível sugerir que no período após a Constituinte de 1987/88, o avanço da direita e do neoliberalismo no quadro nacional foi estimulado pela política de conciliação de classes explicitamente assumida, no plano mais geral da política nacional, pela parcela majoritária da esquerda e da centro-esquerda. Não à toa, o principal líder da direita mais corrupta que empolgou o poder no impedimento de Dilma Rousseff era seu vice-presidente.
Em consequência, aquela política nacional de conciliação de classes, calcada em políticas sociais estritamente focalizadas, cujo exemplo maior é o Bolsa Família, permeou todas as políticas sociais de cunho universal, e em todas estas levou as forças de esquerda e do centro progressista a uma total submissão ao processo de privatização e partidarização dessas políticas, o que por sua vez, realimentou aquela política nacional de conciliação de classes.
Nessa dinâmica, a adesão de boa parte da esquerda ao que denomino “neoliberalismo-social” teve papel importantíssimo, pois uma vez no poder privilegiou políticas sociais focalizadas e privatizantes, em detrimento das políticas sociais públicas, estatais, universais, gratuitas e de qualidade, como deveriam ser o SUS e a Educação pública.
Por essas razões, cabe sim enfrentarmos as lutas setoriais juntamente com as lutas políticas mais amplas. Não apenas para lastrearmos essas últimas, mas também para que, no caso de sucesso parcial, digamos a conquista da Presidência da República com uma ampla aliança democrática, estejamos mais preparados e unidos para as etapas seguintes, respondendo às responsabilidades daí decorrentes em cada setor da gestão do Estado, em particular nas políticas sociais.
No caso do SUS, não fossem tais argumentos suficientes para justificar a importância de compreendermos suas origens, sucessos, decadência, problemas e soluções, com o objetivo de construirmos um SUS de qualidade e para todos, bastaria imaginarmos o que seria o enfrentamento, sem o SUS, da grave pandemia atual da Covid-19. Neste quadro, mais ainda, é o momento de nos valermos da indiscutível, notória e reconhecida importância do SUS no enfrentamento da pandemia, mesmo com todas as suas limitações, para ampliarmos o conhecimento da sociedade sobre sua importância, suas qualidades, problemas e potencial, com o objetivo de desenharmos e construirmos um SUS de qualidade e para todos, um dos pilares de uma sociedade efetivamente democrática e igualitária.
O SUS, a educação pública e as elites progressistas
Formalmente, trata-se do Sistema Único de Saúde (SUS), uma política pública social consagrada na CF/88, uma política fundamental para construirmos um país democrático e igualitário, e uma estrutura nacional de serviços de saúde desesperadamente importante para cerca de 160 milhões de cidadãos e cidadãs que dele dependem exclusivamente, pois não possuem planos privados de saúde.
O SUS, inspirado no National Health System (NHS) inglês, é uma das principais políticas públicas de nosso precaríssimo embrião de um Estado do Bem Estar Social (EBES), embrião este há longos anos em processo de destruição, acelerado agora pela ascensão do fascismo e do ultra neoliberalismo ao Governo Federal.
E se a elite progressista, da qual fazem parte os criadores e colaboradores do Terapia Política, estiver realmente disposta a enfrentar esses dois monstros com um projeto alternativo, democrático e igualitário de sociedade, a luta pela construção de um EBES, com um SUS e uma Educação pública de qualidade e para todos será fundamental.
Entretanto, para isso essa elite progressista terá que encontrar os caminhos políticos para superar sua prática contraditória, na qual, sem perceber, absolve sua má consciência política e social numa “luta” quase platônica pelo “SUS Constitucional” e a Educação pública de qualidade, enquanto objetivamente “não depende” do SUS real, aquele “SUS Pobre para os Pobres”, nem da pobre Educação pública, pois possui renda suficiente para se proteger por meio de planos e seguros privados de saúde e escolas particulares, ou pertence a categorias de trabalhadores, dos setores público e privado, com capacidade para exigir de suas empresas planos privados de saúde e auxílio-educação, como parte dos benefícios indiretos. Vale registrar que todas essas capacidades e benefícios dessa elite progressista são bancadas com fundos públicos, via deduções no Imposto de Renda.
Por isto, para encontrar os caminhos políticos necessários para superar esta prática contraditória, é essencial que essa elite progressista conheça o SUS para além das notícias de jornais, ou mesmo da versão acadêmica, produzida por parte dessa mesma elite progressista e no mais das vezes semioculta nas publicações especializadas.
Assim, o que se pretende nesta série de artigos é apresentar o SUS, para o debate e a crítica, numa abordagem que, embora pessoal, seja clara, concisa, integradora, e densa de significantes e significados das qualidades, benefícios, características estruturais, problemas centrais e hipóteses de superação do que se tornou o “SUS pobre para os pobres”.
Além disso, como já registrado, a compreensão do SUS é também essencial por suas semelhanças estruturais com outras políticas sociais importantíssimas, em particular a Educação pública, no que respeita à total dependência dessas políticas dos azares do federalismo municipalista brasileiro, único no mundo com suas dimensões.
Qual SUS? Qual educação pública?
Como já mencionado, por várias razões o SUS é de importância fundamental para a sociedade brasileira, e em sua história de 32 anos conta com diversos exemplos bem sucedidos, entre estes o Sistema Nacional de Transplantes e o enfrentamento do HIV/AIDS (1).
Entretanto, no dia-a-dia dos serviços de atenção à saúde do SUS no plano nacional, da atenção básica aos de alta complexidade, essas são ilhas de excelência que, em meio a gravíssimos problemas, confirmam o potencial do SUS de se tornar um Sistema de qualidade e para todos.
Referindo-se a esse dia a dia, em artigo “Um SUS para chamar de nosso”, Lígia Bahia mostrou que existem diferentes versões do SUS, desde os que defendem a versão de um SUS focalizado, o “SUS para os pobres”, como é hoje, até os que se batem por seu projeto original, inscrito na Constituição Federal de 1988 (nacional, estatal, público, integral, integrado, gratuito, universal, equânime e de qualidade). Para esses últimos, segundo ela, a questão central é: “o que se precisa fazer para o SUS dar certo?” Mas a resposta a essa questão não é fácil porque, segundo Lígia, “a distância que separa o projeto original da Reforma Sanitária e do SUS [na CF/88] do que existe na prática é imensa”(3).
Por essa razão Lígia Bahia, em depoimento no importante artigo-reportagem “Cai a ficha da reforma sanitária”, nos diz que o que restou do “SUS Constitucional” é quase “como um saco vazio”. E por que “saco vazio”? Porque o SUS e sua “Rede Nacional” de Serviços de Atenção à Saúde estão há longos anos degradados, fragmentados e carentes de recursos técnicos, humanos e financeiros, porque foram amplamente privatizados e submetidos de modo permanente à política partidária e eleitoral na União, estados e municípios.
Isto significa que para os 160 milhões de cidadãos que dependem exclusivamente do SUS, os mais desfavorecidos, os que não tem poder aquisitivo para fugir para os planos privados de saúde, há longos anos os serviços oferecidos por este importantíssimo Sistema Público de Saúde estão se degradando, o que resulta em sofrimento e mortes.
O mesmo se pode dizer da Educação pública, nos seus níveis infantil, fundamental e médio. Não por coincidência, ambas as políticas públicas, Saúde e Educação, dependentes dos azares de nosso federalismo municipalista alucinado, único no mundo em suas dimensões, se tornaram focos do brutal abismo social brasileiro, com uma versão privada para as elites sociais e uma versão pública, precária e de baixa qualidade, para a imensa maioria desfavorecida de nossa população.
Como conheceremos o SUS nessa série de artigos?
Partimos do pressuposto de que é urgente enfrentarmos a necessidade de responder à questão anteriormente colocada por Lígia Bahia: “o que se precisa fazer para o SUS dar certo?” Por isso, a série de artigos que se inicia pretende abordar, entre vários outros, os seguintes aspectos do quadro nacional, do SUS e das políticas sociais, em particular a educação:
I) Obstáculos: as ilusões da elite progressista sobre o Poder Político no pós-Ditadura;
II) Obstáculos: a hegemonia neoliberal; a esquerda e o “neoliberalismo social”, as políticas sociais compensatórias e focalizadas, as políticas sociais universais partidarizadas, privatizadas e a universalidade excludente;
III) Obstáculos: no gravíssimo quadro das políticas sociais e do abismo social brasileiro, a elite progressista absolve sua má consciência política e social na luta platônica por políticas sociais igualitárias e de qualidade. Como trazer essa luta platônica para um combate real?;
IV) Obstáculos: por que “um país democrático e menos desigual” e não “um país democrático e igualitário”? O que significa lutarmos por um país “menos desigual” ou um país “igualitário”, do ponto de vista da luta política em geral e das políticas sociais?;
V) As políticas sociais, o SUS e sua importância fundamental para 160 milhões de cidadãos e cidadãs que dele dependem exclusivamente;
VI) O que é o SUS, sua história, características estruturais, importância e seus graves problemas;
VII) A hegemonia do pensamento normativo sobre o raro e solitário pensamento estratégico-político na construção do SUS e das políticas sociais;
VIII) O SUS e a Educação pública: semelhanças estruturais e especificidades;
IX) Qual o problema central do SUS: seu financiamento ou o federalismo municipalista brasileiro em sua organização? Por que é fundamental identificarmos o problema central do SUS?;
X) Alternativas para o SUS e a Educação pública no federalismo brasileiro: proposições para o debate.
(1) https://www.correiobraziliense.com.br/app/noticia/brasil/2019/12/01/interna-brasil,810526/ brasil-tem-o-maior-sistema-publico-de-transplantes-de-orgaos-do-mundo.shtml) e http://www.blog. saude.gov.br/ index. php/promocao-da-saude/53684-tratamento-brasileiro-contra-hiv-aids-se-consolida-como-referencia-mundial. (2) http://www.epsjv.fiocruz.br/noticias/reportagem/cai-a-ficha-da-reforma-sanitaria. (3) https://issuu.com/fundacaolaurocampos/docs/revista_4-flc-vers_o_final