A manhã era perfeita para caminhar ao ar livre, mesmo a pandemia tendo tornado o ar livre menos livre. O homem de leis preparou-se para caminhar. Camiseta, tênis e short. Sem máscara, porque é coisa indigna e desconfortável. Não é pra ele.
Sabe que a lei do lugar obriga o uso de máscara. Mas só para os outros, que não são sábios de leis como ele. Acostumou-se a ver diante de si uma gentalha metida em brigas contadas em tediosos processos. Superior a quem julga, diz para os outros o que tem que fazer. No passado, aplicava leis. Hoje, sabe que as faz e desfaz para os outros, conforme o que vê e crê.
O guarda vestiu sua farda. Impecável em cada vinco. Detestava passar roupas, mas ele mesmo o fazia. Por dever. Pôs a máscara e saiu pontual, como sempre, naquela manhã perfeita para trabalhar ao ar livre.
Na orla, pouca gente. Atletas de fim de semana e outros mais frequentes desanuviavam a mente mexendo o corpo. Crianças entediadas experimentavam um pouco de liberdade. Todos iam e vinham com receio de adoecer. Máscaras de todos os tipos escondiam bocas e narizes. Alguns olhares mascarados ganhavam ar de mistério. Outros, denunciavam respiração incômoda.
A patrulha de Pedro também ia e vinha. Lentamente. De carro. Vigiando possíveis perigos enquanto jogavam conversa fora. De longe, viram o homem de leis. Sabiam quem era. Entenderam que aquele seria um dia difícil.
O homem de leis, sem máscara e pudor, tentou impor-se. Carteira. Telefonema para quem manda. Cabeça inclinada pra cima só pra olhar de cima pra baixo gente mais alta que ele. Porque seus olhos precisam ser vistos de baixo por gente inferior, ordinária e analfabeta nas coisas que pensa saber.
Cumpriu com seu dever de multar com a indiferença de uma máquina. Mas por não ser máquina, entristeceu-se por dentro. Suportou o peso do desprezo só porque era necessário suportar. Calado.
Entregou-lhe um pedaço de papel fino, no que deveria ser o ponto final daquele encontro desagradável. O homem de leis o pegou apenas para rasgar e atirá-lo ao chão. Ato último de afronta. Só para ter a palavra final, ainda que sem palavras. O guarda incomodou-se com o papel sujando o chão.
O gosto da humilhação ficou na boca pelo resto do dia. Sabia que estava certo. Diz que não liga para o que os outros pensam, mas é só da boca pra fora. Por dentro liga. O que outros lhe fazem anima ou desanima o dia. Aquele estava irremediavelmente desanimado.
Tudo foi filmado. Por prudência e medo. Sabiam que num mundo egoísta, o poder sempre ganha da moral. Também sabiam que num mundo vazio de valores, onde só as aparências contam, a estética é mais poderosa do que a ética. Sem as imagens, estariam perdidos.
Arrogância é de uma breguice suprema! Coisa feia de se ver. Mas nas sombras do cotidiano, as feiuras dominam sem nem ao menos esconder o sarcasmo com uma máscara.