O denominado “novo marco legal do saneamento”, sancionado no último dia 15 de julho, traz alterações importantes na Lei do Saneamento Básico, nas atribuições da Agência Nacional de Águas – ANA, alterando a respectiva Lei, além de alterar outras leis que não trataremos aqui.

A importância do tema é inegável. A quantidade de gente que ainda morre por péssimas condições de saneamento é enorme. Ainda assim, nem tudo que é conveniente do ponto de vista da gestão (normas uniformes de boa qualidade técnica) ou do ponto de vista econômico (capacidade de investimento) pode, numa federação, ser imposto pelo ente central como, já adiantamos, foi feito pela reforma em questão.

Vamos tratar de dois pontos que têm sido incluídos (por exemplo, por Glauce Cavalcante em O Globo, 25.06.20 p. 21) entre os “pilares principais para mudar o setor”: o “novo” processo de regulação e a obrigatoriedade de licitação. Antes, no entanto, precisamos enfrentar outro tema essencial para entender os demais.

Competências constitucionais em matéria de saneamento

Uma das poucas menções que a Constituição Federal faz explicitamente a “saneamento básico” está no artigo 21 que atribui à União competência para instituir diretrizes para o saneamento básico, atribuição que deve ser feita por lei, observando que diretriz é um tipo de norma com um grau de concretização que se situa entre a abertura dos princípios e a maior concretude das regras. Baixar diretrizes é uma competência legislativa limitada que não pode entrar em detalhes acerca do assunto que está tratando.

Outra fonte de competência legislativa sobre o saneamento básico é o artigo 22, que trata da competência privativa da União para legislar sobre “normas gerais de licitação e contratação” e permite que a União legisle sobre os contratos de saneamento básico, mas, novamente, sem a possibilidade de esgotar o tema.

Mas há outra fonte constitucional para o exercício de competência legislativa sobre saneamento básico. É que todo ente (União, Estados ou Municípios) titular de um determinado serviço público – e não há dúvida de que saneamento é serviço público – tem competência legislativa para dispor sobre tal serviço, ainda que tal competência tenha que conviver com outras competências legislativas explícitas. Isso em razão da capacidade de auto-organização que a Constituição confere a todos os entes (que inclui o poder para organizar os serviços dos quais é titular), e pelo princípio segundo o qual qualquer atuação da administração pública, incluindo a prestação de seus serviços, deve estar balizada em lei.

Neste ponto já verificamos que o espaço para a atuação legislativa da União em matéria de saneamento básico deve conviver com a atuação legislativa dos titulares do serviço. Traçar as linhas que separam estas competências é questão complexa pois envolve saber exatamente sobre o que se está legislando e em que intensidade (analisando de forma panorâmica, o Novo Marco ultrapassa qualquer limite razoável do conceito de “diretrizes”). Mas é possível definir algumas decisões que cabem exclusivamente ao titular do serviço, em especial aquelas que, ainda que veiculadas por lei, na verdade são decisões jurídico-políticas sobre a melhor forma de organizar um serviço, incluindo: como ele será prestado (diretamente, por intermédio de ente público, controlado ou não pelo titular, ou por meio de empresa privada); quem será o responsável por sua fiscalização; qual o critério para eventual licitação (melhor outorga, menor tarifa, maior investimento, uma combinação destes fatores); qual a estrutura tarifária.

Pois bem, o titular dos serviços de saneamento, mais especificamente dos serviços de fornecimento de água e de coleta e tratamento de esgoto, foi definido pelo STF (ao julgar uma ação que questionava a Lei que criava a Região Metropolitana do Rio de Janeiro) da seguinte forma: quando todo o ciclo do saneamento básico (captação, tratamento e distribuição da água, coleta, transporte, tratamento e disposição do esgoto), se limitar ao território de um mesmo município, o titular será o município. Quando isso não for possível, o titular será o colegiado representativo da região metropolitana ou microrregião na qual os municípios estiverem inseridos.

Em suma, em qualquer canto do território nacional o titular dos serviços de saneamento pode ser o município ou a região metropolitana (ou microrregião). Em nenhuma hipótese este titular será a União.

Pois bem, a esta altura podemos perguntar: se a União não é a titular do saneamento, como ela pode se apresentar como a principal ou, talvez, exclusiva responsável por estabelecer normas sobre o tema? A pergunta será respondida a seguir, mas já adiantamos que a solução contou com significativa acrobacia jurídica.

A ANANova (quase) Agência Reguladora do Saneamento – e a Grana

Para “regular” nacionalmente o saneamento básico o Novo Marco alterou a Lei da ANA, renomeada como Agência Nacional de Águas e Saneamento Básico, atribuindo à ANA o poder de instituir “normas de referência” para “a regulação dos serviços públicos de saneamento básico por seus titulares e suas entidades reguladoras e fiscalizadoras”.

E sobre que temas versarão essas “normas de referência”? Três ou quatro aspectos mais importantes do saneamento básico? Não, as normas versarão sobre todos os detalhes da prestação dos serviços, incluindo até a padronização de instrumentos contratuais.

Pois bem, essas “normas” de “referência” vinculam os titulares do serviço? A resposta inicial é não. A União não é a titular dos serviços de saneamento, tais normas não são meras diretrizes (impostas por lei), pois tendem a esgotar o tema, e a União não pode atribuir a uma de suas agências reguladoras o poder de impor normas diretamente vinculantes aos titulares.

Mas, como o “mercado” queria normas uniformes (e “mais competição”, como se verá mais à frente) era preciso “dar um jeito”.

O jeito foi apelar para um mecanismo que podemos denominar de “força vinculante da grana (eu pago, você me obedece”). Com efeito, segundo o Novo Marco, a alocação de recursos públicos federais e os financiamentos com recursos da (ou geridos pela) União serão condicionados à observância das tais normas de referência expedidas pela ANA. Ou seja, quem não seguir as normas de referência em questão não poderá receber recursos da União.

Em suma, a União pretende (na prática) transferir a regulação dos serviços de saneamento dos titulares definidos pela Constituição (interpretada pelo STF) para ela própria.

Isso significa que as normas em questão serão obedecidas por quem quiser, em especial por quem quiser receber recursos da União, o que constitui a grande maioria de estados e municípios.

Mas atenção! Para receber tais recursos não basta (abrir mão de autonomia e) obedecer a tais normas. Com efeito, o Novo Marco estabeleceu tantas outras condições para o recebimento de recursos federais que dificilmente algum ente conseguirá comprovar que atende a todos os requisitos (ocasião em que será dito que dinheiro para saneamento existe, o que não existe são bons projetos, uma forma de colocar a culpa nos estados e municípios).

Voltando à atividade “normativa”, o Novo Marco afirma que a ANA “zelará pela uniformidade regulatória do setor de saneamento básico e pela segurança jurídica na prestação e na regulação dos serviços”. Ora, uniformidade regulatória é a antítese do federalismo.

Vale lembrar que qualquer empresa que pretende atuar nos E.U.A. se adapta ao direito de cada um dos Estados federados. Aliás, nos E.U.A. há uma saudável prática de criação de minutas de normas padrão (sobre temas que demandam alguma uniformidade) que são sugeridas aos Estados (que as adotam, ainda que com adaptações). Este modelo poderia ter sido seguido. Seria mais simpático, constitucional e possivelmente tão ou mais efetivo. Mas não, aqui, as atribuições de Estados e Municípios são imensamente menores e, ainda assim, querem reduzir ainda mais este espaço. É difícil pensar em golpe mais direto à autonomia dos municípios e estados.

Mas o problema não é “só” esse. Essa extravagância do Novo Marco é feita à custa do funcionamento da própria ANA, que já tinha a difícil e importante missão de cuidar dos recursos hídricos nacionais. Neste ponto, há de se perguntar qual a expertise da ANA para cuidar de saneamento. A resposta é: muito pouca. A ANA nunca regulou serviços públicos. Sua expertisea água enquanto recurso hídrico – é o objeto e meio dos serviços de fornecimento de água, e compõe o esgoto que ao final será jogado em outro corpo hídrico. Mas tudo isso tem (parafraseando Marcio Moreira Alves) uma relação distante e cerimoniosa com a complexidade dos serviços de saneamento. Não se sabe se a ANA, ainda que com “grana’, conseguirá resolver os problemas de saneamento, mas é certo que sua capacidade para cuidar das águas nacionais vai diminuir.

A obrigatoriedade de licitação

Saudada como a solução para todos os males, o Novo Marco faz uma opção clara pela atuação privada no setor de saneamento ao estabelecer que a prestação dos serviços públicos de saneamento básico por entidade que não integre a administração do titular depende de prévia licitação. Admite-se que o titular do serviço crie uma entidade e outorgue a ela a concessão do saneamento básico sem licitação, mas ele não pode contratar (sem licitação) a empresa criada por outro ente (por exemplo pelo estado, o que ocorre em todo o Brasil).

Como compromisso para atenuar estas proibições, o artigo 16 do Novo Marco permitia que os contratos vigentes (ou as situações de fato) de prestação dos serviços de saneamento por empresa estatal, pudessem ser reconhecidas e formalizadas ou renovados os contratos até 31.03.2022, com prazo máximo de vigência de 30 anos. Tal dispositivo foi vetado.

Pois bem, as restrições criadas pelo Novo Marco à possibilidade de os titulares contratarem diretamente empresas estatais são juridicamente válidas? A resposta também é negativa. Em primeiro lugar, o texto não proíbe esta prática quando a estatal é criada pelo próprio ente. Tampouco proíbe, ao menos expressamente, no caso de regiões metropolitanas, quando a empresa for controlada pelo estado criador da região (que, ao menos indiretamente, compõe a pessoa do titular).

A proibição explícita se dirige aos municípios (não integrantes de regiões metropolitanas), que não poderão contratar diretamente empresas estatais controladas pelos estados.

Pois bem, tal proibição viola a autonomia constitucional do município para escolher a forma de prestação de um serviço do qual ele é titular. Se é incontestável que o município pode criar uma empresa para prestar tais serviços – liberdade que nem mesmo o Novo Marco ousou violar – também nos parece inviável – sob qualquer desenho de federalismo cooperativo, impedir que ele possa optar por contratar diretamente empresa estatal criada por outro ente.

A opção por maior ou menor participação privada em serviços de saneamento envolve discussões econômicas e ideológicas que não cabe desenvolver aqui. Não concordamos nem com a necessária ineficiência dos entes públicos (que em grande medida são ineficientes por se submeterem a normas e controles que privilegiam formalidades sem compromisso com a eficiência), nem com a necessária eficiência dos entes privados (cuja atuação pode ser boa ou desastrosa a depender da modelagem da concessão e da efetiva capacidade do titular em fiscalizar seus termos).

O governo que ganhou as eleições com um programa claramente privatista, teria legitimidade para, respeitada a Constituição, buscar aumentar a participação privada nos serviços públicos de titularidade da União que, aliás, são muitos. Mas a União não pode impor este modelo em relação a serviços públicos dos quais ela nem remotamente é a titular.

Em suma, entendemos que tanto os municípios como as regiões metropolitanas podem continuar a contratar diretamente empresas estatais (mesmo não sendo seus controladores), para prestar serviços de saneamento.

Vale registrar que, após a Constituição de 1988, o STF tem sido tímido em fazer valer as novas competências de estados e municípios face ao avanço centralista da União. Pois bem, estamos em tempos de “timidez diminuída”, o que transpareceu não apenas em relação à denominada jurisprudência da Covid (que afirmou a competência de Estados e Municípios para conduzir o enfrentamento da pandemia), que poderia ser considerada circunstancial, como em um julgamento deste ano que reconheceu a competência do estado especificamente em matéria de gestão de recursos hídricos. Em suma, há esperanças de que o STF passe a exercer com mais intensidade o papel de tribunal da federação.

Para não dizer que não há elogios, o NMLSB veda a distribuição de lucros pelo prestador de serviços que estiver descumprindo as metas estabelecidas no contrato, o que pode ter um efeito muito positivo no cumprimento de tais metas. No entanto, sua efetividade real dependerá da criação de estrutura de acompanhamento e auditoria dos respectivos contratos.

Conclusão

Gostaríamos de acreditar que o Novo Marco irá ajudar a reduzir a imensa dívida social brasileira em matéria de saneamento. Mas o fato é que boas intenções e a seriedade do problema a ser resolvido não justificam gambiarras (in)constitucionais. O equívoco em entender que a União sempre decide melhor ficou grosseira e claramente evidente com o desastre humanitário causado pela forma como a União, por seu chefe, vem gerindo a crise da Covid-19. Não fosse o STF ter reconhecido o espaço de atuação de estados e municípios e a perda de vidas seria ainda maior. Inútil procurar, em qualquer outro lugar, um melhor lembrete da necessidade de preservar a autonomia de estados e municípios.