A pandemia aprofundou tendências que já estavam presentes na economia mundial, mas que acabaram ficando mais evidentes nestes últimos meses desde o aparecimento da Covid-19.
Vale levantar três elementos, pelo menos. No campo da geopolítica, se explicitou com força a disputa pela hegemonia entre EUA e China. O movimento principal vinha se dando antes em torno do conflito comercial entre os dois países, em meio a subidas de tom (em especial dos EUA), blefes de ambos os lados, e eventuais acordos para distensionar, como o acertado no ano passado. O fato de negociarem diretamente chega a ser uma demonstração de força estadunidense, já que em um plano mais abstrato, a China tem tentado jogar as desavenças comerciais para serem resolvidas no âmbito multilateral, enquanto os EUA, em especial a partir do Governo Trump, trabalham para esvaziar os espaços multilaterais e forçar as negociações internacionais em conversas bilaterais.
A pandemia não desfez o conflito comercial, mas colocou a ênfase em torno de uma disputa sobre a responsabilidade pelo aparecimento e proliferação do vírus (vale lembrar a esse respeito que o discurso persistente do presidente estadunidense fala em “vírus chinês”, uma tentativa direta de associar a China ao aparecimento do vírus). A seguir, existe uma clara disputa entre como tratar a pandemia. A estratégia chinesa de um radical isolamento social e travamento da economia, com bloqueio de regiões inteiras, parece um sucesso absoluto – tanto em número de casos quanto de mortes, assim como no tempo de recuperação da atividade econômica – frente à estratégia do Governo Trump de primeiro tentar esvaziar a gravidade da pandemia para a seguir trabalhar com restrições ao isolamento social, colocando ênfase na manutenção da operação do sistema econômico.
Finalmente, existe, e não só envolvendo esses dois países, uma corrida pela produção de uma vacina contra a Covid-19, que no caso brasileiro acabou funcionando como mais um elemento da disputa entre governadores de Estado e o governo federal, fato se observa no país desde o início da pandemia (o governo paulista entra nessa corrida associado aos chineses). Assim, o ambiente mundial da pandemia se converteu em mais um espaço da disputa hegemônica entre EUA e China, presente antes na disputa comercial e nos encaminhamentos internacionais a respeito da tecnologia 5G, entre outros.
No âmbito da economia internacional, a pandemia agravou uma perspectiva de crise econômica que já estava presente antes. Movimentos bruscos de capital, especulação nos mercados cambiais e de commodities, em especial contra os chamados “mercados emergentes”, aversão ao risco por parte de investidores, situação de sobre-endividamento de empresas altamente alavancadas por taxas de juros em torno de zero e confrontadas com perspectivas de redução que vinham desde 2019. O agravamento em 2020 já estava sinalizado, conforme pudemos verificar com as desvalorizações cambiais que já ocorriam desde o fim do ano anterior.
A queda acentuada dos preços do petróleo, agudizada pelo conflito de interesses entre Rússia e Arábia Saudita, dois grandes produtores, se apresentou como um dos indicadores da crise no mercado de commodities. Nesse caso, a pandemia operou até de uma forma generosa, se apresentando como responsável pelos problemas que já existiam e funcionando também como um caminho de solução. Manifestou-se uma espécie de “keynesianismo de ocasião” em que a pandemia, e não a crise do capitalismo concentrador e financeirizado, aparece como a justificativa para políticas de expansão dos programas de ampliação de gastos e investimentos públicos na ampla maioria dos países.
Finalmente, no que diz respeito ao mundo do trabalho, a pandemia acontece no meio de uma nova onda de transformações tecnológicas e gerenciais, que sucede ao ciclo anterior no final do Século XX. Essas transformações, que incluem a incorporação de novos materiais, nanotecnologia, engenharia genética, e mais recentemente elementos como impressão 3D e inteligência artificial, vêm tendo efeitos devastadores sobre o mercado de trabalho. Pelo menos até aqui, os efeitos negativos sobre o número de empregos, e sobre a qualidade dos postos de trabalho, têm sido muito maiores que as novas possibilidades abertas (e que alguns dizem que ainda serão abertas).
A pandemia, ao colocar forçosamente uma nova discussão, como a expansão rápida e não planejada do teletrabalho em muitas de suas modalidades, e a chamada “uberização” do trabalho (atividade vinculada a “aplicativos” e não a empresas, intermitente e altamente flexível, e via de regra muito mal remunerada), ajuda a aprofundar o problema. A pandemia não é a causa, ela aparece em meio a um processo em curso, mas é possível que em algum momento se comece a falar em um mercado de trabalho antes e outro posterior à pandemia, como se esta tivesse sido um momento de ruptura. Esses três elementos trazidos para reflexão, certamente estarão no centro do debate econômico do mundo pós-Covid-19.