O frio de agosto veio mais rigoroso que de costume, encapsulando ainda mais aquele povo sem costume para o frio. As ruas, já bem rareadas de gente medrosa da pandemia, ganharam ar ainda mais melancólico com os chiados dos pneus rolando pelas poças d’água e abafando os sons desconexos vindos dos apartamentos.

A maioria das janelas brilhava. Algumas oscilavam em coloridos de tvs exibindo coisas de tvs. Noutras, luz fria e uniforme iluminava rostos vidrados em um site qualquer. Numas poucas janelas havia o escuro de quartos que escondiam o que se faz no escuro. Era cedo ainda.

No apartamento de Jaime, as crianças monopolizavam a tv em sucessivos desenhos animados. Jaime bisbilhotava a vida alheia em seu notebook enquanto, no banheiro, sua esposa trocava mensagens picantes com o amante forte e meio cabeça oca.

No trabalho, Jaime é na sua. Diz dizer o que pensa, mas pensa ser melhor dizer o que se espera que ele diga. O resto, tranca dentro de si. No trabalho, Jaime é só meio Jaime.

Jaime não ama ninguém. Nem a si mesmo. Não gosta de ninguém. Nem de nada. É oco. Preenche o vazio dentro de si com a atenção de gente que ele não conhece de verdade. É capaz de qualquer coisa por atenção. Só pra se sentir um pouco vivo.

Na internet, Jaime é mais Jaime. Tem nome diferente. Imagem diferente. Opiniões diferentes. Muitas. Sobre tudo e sobre todos.

Não tem medo de dizer besteira. Nem de magoar ou ferir alguém. Ao contrário. Caça nas redes pessoas para magoar e ferir. Mente, ameaça, julga ou simplesmente diz com ar arrogante besteiras incríveis. Só escreve em caixa alta. Como quem grita. Ganha muitos aplausos a cada vida que entristece.

“GENTE, VOCÊS PRECISAM VER ISSO! OLHA QUE SAFADA! DIZ QUE FOI ESTRUPADA. MAS QUEM É ESTRUPADA RECLAMA, NÉ? PÔ, ELA NÃO RECLAMO? DEVE TER É GOSTADO”. Escreveu sobre uma menina de dez anos que foi violentada. A mesma idade de sua filha, que se atracava com o irmão mais novo buscando inutilmente a atenção dos pais.

Barbaridade após barbaridade, as palminhas e joinhas das redes aumentam. Frases de apoio vindas de gente tão vazia quanto ele pipocam na tela às dúzias. Incentivos ao ódio, preconceito e violência. Fala em nome de Deus ou de alguma ideologia, apesar de não sacar nada de Deus ou religião. Ideologia nem sabe o que é. Mas fala deles com desenvoltura. E muitos incentivam. No seu ódio, Jaime nunca está só.

A notícia do suicídio da menina pipocou na tela enquanto iniciava outro linchamento moral. Não se abalou. Foi rápido. Criou uma história dizendo que o suicídio não era real. Invenção de gente que quer calar quem fala a verdade. Postou foto do cadáver dizendo que era montagem.

Ficou orgulhoso de si mesmo quando viu que aquela mensagem estava entre as mais lidas. Trend topic. Deitou-se para dormir o sono dos justos sem perceber que sua esposa chorava baixinho debaixo das cobertas.