As contradições de um projeto sem voz e os possíveis caminhos à resistência

A política educacional que não tem o contraditório em sua construção não comporta pessoas. O ideário neoliberal e neoconservador se aproxima e as pessoas e suas histórias tornam-se empecilhos a concepções que, ao se depararem com a materialidade, só existem se servis à exclusão. Por isso, a democracia incomoda – por isso, a diversidade na escola pública perturba. O embate em relação ao aborto da menina de 10 anos foi simbólico. O que interessa é a vida que virá, uma ideia. A criança que sofreu e sofre na mão de um sistema excludente é real demais para o projeto que detém o poder. Como defender a família, se o crime acontece dentro de casa? Como defender a meritocracia, se a uma vida tão jovem não é permitida a possibilidade de merecer?

A universalização dos direitos sociais, declarada na Constituição Federal de 1988, e os direitos fundamentais, previstos no Estatuto da Criança e do Adolescente precisam sair do texto e se transformar em políticas públicas que façam sentido para a vida das pessoas, enfrentando as desigualdades históricas com as quais nos deparamos cotidianamente. Avanços ocorreram no pós-88; a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional n.º 9.394/1996 foi promulgada pelo então presidente Fernando Henrique Cardoso, tornando-se peça central para a estruturação e funcionamento da educação brasileira.

Também, durante os Governos Lula (2003-2010) e o primeiro Governo Dilma (2011-2014) acompanhamos, especialmente na Educação Básica, políticas comprometidas com a sua democratização, garantindo financiamento e ampliação da cobertura escolar, dentre as quais destacamos: o Plano de Ações Articuladas, através do qual o governo federal prestou assistência técnica e apoio aos municípios; a Emenda Constitucional (EC) n.º 53/2006 que criou o Fundo de Manutenção e Desenvolvimento da Educação Básica e de Valorização dos Profissionais da Educação (Fundeb); a EC n.º 59/2009 que tornou obrigatório o ensino dos quatro aos 17 anos, garantindo inclusive a universalização da pré-escola; o Novo Exame Nacional do Ensino Médio; e, o acréscimo de um ano no Ensino Fundamental.

Contudo, no campo educacional, a pandemia revelou fragilidades do sistema, trouxe à tona o debate sobre a educação a distância e o ensino remoto, bem como escancarou a importância das instituições escolares para a vida de crianças, jovens e adultos. É emergente pensarmos ambientes educativos potentes, favoráveis à diversidade e inclusivos; essa “tarefa” exige intencionalidade político-pedagógica e ampliação do recurso público para as instituições públicas; financiamento que foi reduzido a partir da EC n.º 95/2016.

Recorrentemente somos interpelados em conversas informais pela pergunta: “Como as crianças que não têm computador e internet têm mantido suas atividades escolares?”. A resposta causa um constrangimento: elas não têm ou, em alguns casos, levam atividades reprografadas para fazer nas suas casas. Residências, que para além das novas tecnologias, muitas vezes não possuem comida, energia elétrica, adultos referência que consigam acolher e atender as crianças em suas necessidades básicas.

As condições são extremamente desfavoráveis para as classes populares, especialmente para a população negra e para as meninas que se encontram desde cedo imersas nas aprendizagens e compromissos domésticos. Alguns dados podem ilustrar a complexidade da problemática: de acordo com respostas dos estudantes ao questionário contextual do Sistema de Avaliação da Educação Básica (Saeb), em 2017, 48% deles não possuíam computador em casa no 5º ano e 45% no 9º ano.

E quanto às professoras, palavra usada no gênero feminino, pois a maioria destas profissionais em exercício na educação básica são mulheres, e demais profissionais da educação, conhecedoras do cotidiano das escolas e das entranhas do processo educativo: onde estão, o que pensam e dizem? Ironicamente, elas não são ouvidas. Há um projeto de silenciamento das educadoras, exemplificado por iniciativas como a Escola sem Partido. Em nome de uma suposta liberdade, o Projeto de Lei n.º 246/2019 de autoria da deputada Bia Kicis, autorizaria os estudantes a gravar aulas, impediria as professoras e as instituições escolares de discutirem questões que envolvessem gênero e sexualidade e atacariam a liberdade de cátedra na defesa de uma imaginada neutralidade e do respeito às escolhas das famílias. Ora, não é na escola que se dá o processo de ensino- aprendizagem e tem-se o acesso aos conhecimentos historicamente construídos? Não é neste espaço que se constroem os conhecimentos? Cabe esclarecer que esta iniciativa, entendida inconstitucional pelo Supremo Tribunal Federal, é sintomática de um projeto de país que, apesar das evidências, nega a ciência e as desigualdades sociais, tratando-as como se fossem de mérito, que não valoriza a educação e suas profissionais.

Com a chegada da pandemia e o fechamento das escolas em março de 2020, o que se observa é o agravamento do processo de alta intensificação do trabalho docente. De acordo com a pesquisa Docência na Educação Básica em Tempo de Pandemia, realizada pelo Grupo de Estudos sobre Política Educacional e Trabalho Docente da Universidade Federal de Minas Gerais, uma das facetas da desigualdade educacional aparece: professoras trabalham mais e estudantes participam menos. No questionário contextual do Saeb destinado às professoras (2017), um percentual importante respondeu que nunca utiliza programas/aplicativos pedagógicos de computador (19%) e 15% respondeu que não utiliza porque a escola não dispõe de tais recursos; quanto ao uso da internet para fins pedagógicos, 10% delas declararam que nunca utilizam e 12% que não utilizam porque a escola não tem.

Mas quem escuta as professoras? A contribuição de Chimamanda Adichie sobre como se produz uma história única é assertiva: para ela, para se ter uma história única sobre um povo, é só contá-la repetidas vezes e isso é o que ele será nessa narrativa. Os discursos oficiais da autoimagem das profissionais, de desqualificação e de desprestígio do seu trabalho não raramente ignoram a complexidade do fenômeno implicado na garantia do direito à educação de qualidade a todos e a cada um/a. Nesse sentido, a pandemia reforça aspectos outrora latentes. Para resistir, é necessário refazer articulações e valorizar as construções já realizadas, como o Plano Nacional de Educação (2014-2024), em especial as metas que tratam da valorização das profissionais da educação – formação inicial, continuada, carreira, salário, condições de trabalho e saúde.

Todavia, nas políticas públicas dos últimos anos ganha força a desvalorização e a precarização do trabalho docente, sendo possível observarmos o rebaixamento da exigência de formação em nível superior, planos de carreira pouco atrativos, perspectiva pragmática na formação dos professores, fundações direcionando e executando a formação, além das formas de contratação sem concurso público.

Tão importante quanto valorizar o que se fez, é apontar novos caminhos. A articulação feita para o Fundeb demonstrou que novas construções são possíveis. Somente assim, juntos, será possível enfrentar um modelo em que cada rede e/ou instituição de educação toma decisões isoladas, que pouco ou nada dialogam com a realidade dos estudantes e das profissionais. Se as condições materiais e as vozes das educadoras são deixadas de lado e, assustadoramente, vamos acompanhando o aprofundamento das desigualdades nesse País já tão desigual, cabe pensarmos de forma propositiva o atual contexto e os tempos vindouros.

O direito subjetivo à educação está em xeque. Para combater a privatização da educação, um perigo à gestão democrática, será preciso resiliência, luta e processos de vivência coletiva e ética. Como bem colocou Luiz Carlos de Freitas, em sua fala na Reunião Anual da Associação Nacional de Pesquisadores em Educação em 2019, “o combate mais efetivo é aquele nas escolas, nas salas de aula”. Concordamos, e acrescentamos: sejam estas salas de aulas presenciais ou virtuais, educação se faz com pessoas.