Em 11 de setembro de 2001, quando tudo começou, eu estava no trajeto até o centro do Rio. Ao chegar vi várias mensagens de celular me mandando correr para uma televisão. Achei uma disponível. A primeira torre já havia desabado, mas eu ainda não tinha me dado conta. Assisti ao vivo a segunda torre cair, na narração emocionada e desconcertada de Carlos Nascimento. Aos poucos compreendi que a primeira torre já havia caído. Um sentimento desconcertante de angústia, de percepção da História acontecendo, de incerteza quanto ao futuro.
Meses depois encontrei com Malcolm Harrison num restaurante que fica na beira da Lagoa Rodrigo de Freitas. Eu tinha levado ele e sua namorada brasileira lá uma vez. A comida era só razoável, mas a vista de fim de tarde era espetacular e ele insistiu em voltar. Ele não advogava mais, havia entrado no Departamento de Estado e agora era vice-cônsul dos E.U.A. em São Paulo. Era a primeira vez que nos encontrávamos depois do 11 de setembro e foi para esse tema e para as tais “armas de destruição em massa” possuídas por Saddam Hussein que o assunto se encaminhou. Ao se referir a alguns países que estavam se opondo à guerra e duvidando das provas apresentadas pelos E.U.A. (que depois se revelariam falsas e acabariam com as carreiras de Colin Powel, Tony Blair e outras figuras) ele exclamou:
– Bush tem razão, ou você está com os E.U.A. ou está contra nós!
Um “americano normal” poderia falar essa frase. Malcolm não. Negro, nascido em West Palm Beach, Flórida, formado em Harvard, tendo trabalhado em Nova York, Londres, Buenos Aires, Bogotá e agora São Paulo, conhecia o mundo e suas contradições, era um patriota, mas não era dado a patriotadas. Gostava de dizer, com um riso irônico, que votava sempre nos democratas para presidente e nos republicanos para o congresso “a fim de manter um equilíbrio”.
Malcolm (além claro do inglês) falava espanhol, alemão e português e foi para treinar o português que ele entrou na minha sala, em 1996, pouco depois que eu havia começado a trabalhar como trainee no escritório Brown & Wood, perguntando se eu era o brasileiro novato. Ficamos amigos e eu devo a ele muito do que aprendi sobre a Grande Maçã.
Aquela frase, portanto, não era dele. Ou melhor, uma pessoa como ele não podia acreditar naquilo. Foram quase duas horas de discussão franca. No final ele reconheceu: – Ok, você tem razão, a frase é infeliz, mas você não tem ideia de quão duro o 11 de setembro foi para os americanos. Fiquei feliz não apenas por ele ter me dado razão (orgulho besta, reconheço) mas sobretudo porque, se americanos como ele passassem a adotar postura tão radical, imagina o que seria capaz de fazer a grande massa do eleitorado americano.
Em 10 de outubro de 1996 eu enviei um cartão postal para minha avó Lourdes. “Dos dois prédios maiores à direita eu trabalho no da esquerda (aquele que tem a antena)”. Na primeira vez em que fui visitá-la após o 11 de setembro ela me apareceu com o cartão postal dizendo que, depois do que havia acontecido, talvez eu gostaria de guardá-lo. Eu agradeci e aceitei. Olhei para o prédio da esquerda, tentei imaginar onde era a minha sala. Algumas vezes trabalhei até tarde e, em noites de muito vento, eu sentia o prédio oscilar e ranger como uma velha traineira em dia de mar revolto. Me disseram para não me assustar. Isso era devido à altura do prédio, eram 107 andares, e, se não tivesse uma “folga”, a estrutura poderia não suportar. Talvez essa folga tenha ajudado a absorver o impacto e dado tempo para muita gente escapar. Do escritório foram dois ou três que morreram. Se o impacto fosse 30 minutos mais tarde as vítimas seriam bem maiores. Minha sala não existia mais, o mundo como o conhecíamos até então também não.