Primeira aproximação: a proposta hegemônica. Ela defende que as despesas públicas deveriam ser pautadas pela arrecadação do ente governamental, qualquer que seja ele, de modo a evitar a geração de déficit orçamentário e, consequentemente, seu endividamento via lançamento de títulos públicos no mercado – e, por causa, formação de Dívida Mobiliária.

Também integra tal proposta a recusa ao equacionamento desse déficit, pelo menos discursivamente, através do aumento da tributação. Ainda: seus defensores entendem que eliminado o mencionado déficit e.g., obtido o orçamento equilibrado inexoravelmente se alcançaria uma economia saudável. Mais: que o que denominam de gastança governamental seria o responsável pelos problemas em exame e, também por causa, pela distorção alocativa dos recursos e ulterior impedimento do funcionamento ótimo da economia. Por fim, anote-se que o debate em tela expressa dada agenda: a do liberalismo econômico.  

Segunda aproximação: peça central da agenda neoclássica. A história do liberalismo econômico é relativamente longeva e apresenta momentos marcantes. Um desses ocorreu com o surgimento da escola Neoclássica (Marshall, Walras, Pareto etc. ) na passagem do século XIX para o XX. Essa escola, reiterando, da família do liberalismo econômico, não podia vir ao mundo senão como repto à Marx, dadas as suas agudas e tonitruantes críticas ao capitalismo em meados do século retrasado. Impunha-se assim para ela rechaçar a apontada criticidade, em especial o fato desse autor sustentar que o modo de organização da vida social em exame seria eivado de antagonismos de classes e marcado por recorrentes crises econômicas.

Portanto, não surpreende que o núcleo duro da formulação neoclássica tenha buscado ‘desenhar’ um mundo “clean” em oposição ao “dark” que emerge da análise marxista. Para esse fim muitos foram os procedimentos metodológicos empreendidos, bem como os pressupostos adotados de modo a sustentar o novo modelo de análise. Todos eles, vale a ênfase, orientados no sentido de ‘venda da ideia’ de que a ‘sociedade modelada’ funcionaria harmonicamente e alcançaria ótimos econômicos e sociais (pleno emprego de todos os recursos disponíveis e justiça distributiva), desde que o supramencionado liberalismo efetivamente operasse enquanto tal destacando-se aí, dentre outros aspectos, a estrita observância ao preceito do orçamento equilibrado (ou política fiscal neutra).

No que trata desse último aspecto, vale observar que essa condição possui uma singularidade; afinal, ela não apenas se encontra sob a responsabilidade direta dos governos centrais, como está indissoluvelmente imbricada com a rejeitada, por parte dos liberais, intervenção governamental.

Terceira aproximação: a crítica teórica de Keynes. O importante economista inglês J. M. Keynes critica frontalmente essa formulação. Dada a discussão deste artigo, cumpre chamar atenção de três pontos destacados por esse autor: a) a suposta existência de política econômica (monetária, fiscal etc.) neutra seria totalmente improcedente, posto que governos/Estados não pairam abstratamente sobre a sociedade; b) sendo assim, segue ele, os governos não deveriam se furtar a intervir na economia através de políticas fiscais anticíclicas (como também monetárias) – é dizer, restritivas nos auges e expansivas na crise econômica de modo a evitar pressões inflacionárias ou ao reverso severas recessões ou mesmo marcadas depressões; e, c) avançando nessa “démarche”, assinala que déficit público não é necessariamente ruim e superávit tampouco sempre bom.

Em suma: para Keynes as pretensões dos neoclássicos seriam tanto irrealistas quanto deletérias uma vez que: A) além dos agentes econômicos não serem racionais, a moeda e o Estado não seriam neutros etc., tampouco os agentes privados deixados ao sabor das ditas livres forças de mercado tenderiam a produzir ótimos econômicos e sociais, e sim o seu reverso, a anomia/entropia e a barbárie; e, B) a busca férrea pelo orçamento equilibrado seria erro crasso, como demonstrado em 1929 nos países mais aferrados a essa orientação (caso dos Estados Unidos da América e da Inglaterra) que, não por acaso, foram os últimos a sair daquela monumental crise. Enfim: o liberalismo econômico seria um equívoco científico e sua crença na não intervenção estatal, materializada no pressuposto/proposta de orçamento equilibrado uma tonteria de sérias consequências práticas e, no caso, para a obstaculização do desenvolvimento econômico.      

Quarta aproximação: o retorno triunfal dos defensores do ajuste fiscal. Os referidos economistas, travestidos de neoliberais, a partir do Consenso de Washington, de 1989, retomaram todas as bandeiras do velho liberalismo e outra vez, dentre outras, a do ajuste fiscal. Nesses termos, além de como sempre demonizarem o Estado e sacralizarem o Mercado, eles defenderam cortes nos gastos públicos, em particular os de custeio e de capital da máquina pública. Por corte nas despesas de custeio, leia-se redução das despesas com salários, aposentadorias e pensões dos servidores públicos, destacadamente nas áreas de educação, saúde, ciência e tecnologia, arte e cultura etc., bem como dos gastos de manutenção da referida máquina afeita a essas mesmas áreas.

Por corte nas despesas de capital, leia-se redução das despesas em obras infraestruturais (estradas, ferrovias, hidrelétricas, saneamento básico etc.) etc. Mas anote-se que não são todos os gastos que são atingidos pela volúpia desses economistas ‘mãos de tesoura’ a esse respeito vide o item/peso expressivo das despesas financeiras nos orçamentos nacionais. A preservação dos dispêndios, financeiros, segundo os partidários desse tipo de ajuste fiscal, segue a lógica de que primeiro seria preciso cortar os anotados gastos de custeio e capital para aí sim, ‘naturalmente’, reduzir os custos financeiros. Ou seja: a culpa dos excessivos gastos financeiros – e problemas econômicos radicaria nos demais gastos (resultantes do que consideram indevido intervencionismo governamental). Em seguida, vejamos um contraponto a essa concepção. 

Quinta aproximação: críticas dos economistas heterodoxos. Apesar de terem origens teóricas distintas eles apresentam duas inscrições básicas: são contrários à perspectiva neoclássica e possuem ‘algum pé’ nos ensinamentos de Keynes. Para esses economistas, por exemplo: a) o corte das despesas governamentais de custeio e capital atingiria direta e negativamente os gastos com o Consumo (pessoal da sociedade) e o Investimento Público. Logo, o próprio Produto Interno Bruto; b) o corte dessas despesas, também negativo, mas indiretamente, constrangeria ainda os gastos com compra de máquinas e equipamentos junto ao setor privado (Investimento Privado) e, assim, mais uma vez o crescimento do PIB; e, c) como consequência, a combinação desses três tipos de gastos, dada a política do ajuste fiscal, frearia não ‘apenas’ a dinâmica da economia, como a geração do emprego e a arrecadação tributária.

Observação importante: o quarto item da mencionada equação, os saldos de exportações, raramente são suficientes para garantir/sustentar a geração de postos de trabalho e renda nacional. Isto posto, aí o núcleo da sua crítica, os economistas heterodoxos chamam atenção para o significado e as implicações da preservação das despesas com juros, a parcela financeira dos supramencionados gastos públicos.

Dois aspectos são então por eles destacados: (i) que a racionalização neoclássica expressaria uma prática incomum na medida em que ela se volta exatamente para os dispêndios menos expressivos do orçamento e não para o mais relevante, como o faria qualquer cidadão comum (ilustrando: no Brasil esses  gastos representam mais de 40% do orçamento da União); e, (ii) que essa mesma racionalização, além de cientificamente insubsistente, desvelaria toda sua lógica perversa contra os que não vivem de juros, o que, querendo ou não, também demonstraria ser essa política demonstração inequívoca de opção preferencial pelo rentismo e não pelas atividades geradoras de riqueza real (dadas as dificuldades que ela impõe às decisões de consumo, produção e investimento). 

Sexta e última aproximação: um teste de realidade (o caso brasileiro). A história brasileira relativamente recente mostra que sempre que os gestores econômicos seguiram essa cartilha o resultado foi  a produção ou o aprofundamento da crise da renda e do emprego. Ilustrando: vide os dois mandatos de Fernando Henrique Cardoso, o primeiro do ex-presidente Lula, o segundo da ex-presidente Dilma e, sobretudo, os mandatos de Temer e Bolsonaro, capitaneados respectivamente pelos ultraliberais Meirelles e Paulo Guedes.

Portanto, não é por acaso que com a radicalização das práxis neoliberais, como exemplificado pela adoção do chamado Teto dos Gastos Públicos das despesas de custeio e capital da gestão Temer/Meirelles (teto esse mantido pelo atual governo), a economia do país tenha capotado de vez como demonstrado sobejamente pelos indicadores oficiais. Nesses termos, trivial asseverar que a dramática crise econômica na qual estamos mergulhados é anterior ao evento da pandemia de Covid-19, bem como dizer que, dado o liberalismo no qual se alicerça, a decisão política de fazer os apontados cortes em nome de um suposto e sacrossanto orçamento equilibrado combinadamente com a preservação dos interesses da especulação financeira, responde pelo encalacro histórico em que se encontra a economia brasileira.

Enfim: lá se vão bons anos perdidos, em especial os últimos cinco (aproximadamente), por conta da adoção radicalizada de uma política econômica passadista, classista (que interessa apenas aos grandes detentores da riqueza financeirizada) e perversa com os pequenos e médios empresários e as maiorias populacionais!  

Artigos recentemente publicados sobre o tema no Terapia Política: de Paulo Nogueira Batista e de Adhemar Mineiro.