Em outubro de 2018, tive a oportunidade de assistir à conferência da antropóloga Rita Laura Segato no congresso do Conselho Latino-americano de Ciências Sociais (CLACSO) em Buenos Aires. Eu estava esperando por essa fala, pois tinha lido o livro dela: La Guerra contra las Mujeres (2016). Nesse ano, 2018, tinham assassinado a Marielle Franco e o Anderson Gomes. Era claro que esse crime evidenciava o que já estava instalado como o sentimento político central que decidiria as eleições: o ódio. Mas era algo mais do que isso, era um projeto político articulado, bem planejado, que se apropriava da dor, do ódio e do ressentimento dos mais de 12 milhões de desempregados, dos milhares que tiveram que entrar no mercado de trabalho uberizado e precisavam se manter horas a fio trabalhando sem parar, apoiados no discurso do trabalho empreendedor e na raiva à classe política como um todo, e ao PT. Não que os setores políticos, incluindo o PT, não tivessem responsabilidade sobre a situação, mas a agudeza do discurso anunciava algo mais sistêmico.
Rita Laura Segato, na sua análise, ia fundo. Começava se perguntando o que tinha levado o capitalismo global central a abandonar o discurso da multiculturalidade, da inclusão de pautas raciais, étnicas, de gênero e de direitos humanos, que até o momento pareciam conviver pacificamente com o sistema. A resposta aparecia na hora. Embora a multiculturalidade colocasse cabides identitários, como os chamou Bauman (1998), ela não tinha conseguido questionar a estrutura social, política e econômica, a ponto de incluir a justiça social que esses grupos disputavam.
Por outro lado, a dinâmica da incorporação e das lutas acirrava as contradições, e, embora não mudando o sistema de distribuição de riqueza, poder e justiça, essas pautas estavam, sim, questionando as bases sobre as quais o capitalismo se estruturava. E quais eram essas bases? O patriarcado e o racismo, Segato respondia, sobre os quais estava estruturado o sistema desde a época colonial na América Latina e no sistema-mundo. Enquanto Anibal Quijano (2005) trabalhou profundamente sobre a origem do racismo como definidora do poder colonial e da divisão do trabalho, Rita Segato fez essa análise colocando o patriarcado como elemento central de dominação, exploração e violência do sistema. Citava o caso do Brasil como paradigmático. Os discursos dos parlamentares por ocasião do impeachment da presidenta Dilma eram um bom exemplo: por Deus, pela família tradicional, pelo torturador (da presidenta). Outro exemplo que ela cita é a base programática do movimento “Escola Sem Partido”, no qual, além desses valores, cita-se algo chamado de “ideologia de gênero”, a ser combatida.
Na rica e profunda análise de Rita Segato, a energia da libido aparece orientada pelo “mandato de masculinidade” junto do pacto de dominação racial, como o que ela chama de “primeira pedagogia de expropriação e dominação”. E na virada conservadora do norte geopolítico que engloba também a América Latina, a associação do gênero com a violência se constitui no pilar fundamental do que ela muito bem nomeia como “ordem mafiosa”, incluindo milícias, paramilitares, guerreiros paraestatais e estatais. Isso, hoje, combina-se com um projeto de Estado mínimo, concentrado no poder policial e militar, somado à pauta do fundamentalismo cristão que casa muito bem a reclusão da mulher ao lar com o direito à apropriação e crueldade contra os corpos femininos ou feminizados (incluindo grupos LGBTQI+, crianças, jovens).
Desse caldeirão resultou a eleição da personificação desses elementos no mandatário máximo da ainda república do Brasil e seus ministros, com destaque para a ministra da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos e do atual ministro da Educação. Hoje, na crise acentuada pela pandemia da Covid-19, além da sobrecarga de trabalho doméstico que permanece invisibilizado, o aumento da violência contra as mulheres registrada em dados (ver Atlas da Violência, IPEA, 2020) resulta evidente.
Essa violência teve o seu ápice na recente perseguição da menina de 10 anos de idade, grávida em decorrência da violência sexual exercida durante vários anos dentro do seu lar. Foi perseguida e hostilizada por grupos fundamentalistas cristãos e pelo falso moralismo de alguns médicos, quando decidiu fazer um aborto permitido por lei. Somam-se a esse circo de horrores as atuais declarações do ministro da Educação atribuindo à “opção” (segundo ele próprio, “errada”) pela homossexualidade de jovens pertencentes ao que ele chamou de “famílias desajustadas” e afirmando que a educação sexual no ensino básico pode levar a discutir questões de gênero – o que ele questiona (ver entrevista no jornal Estado de São Paulo, 24 de setembro de 2020).
Assim, esse projeto mostra qual é a sua missão: um acentuado capitalismo liberal, só interrompido por rompantes de oportunismo político que permitam capitalizar ajudas emergenciais, combinado com pautas moralistas que tentam devolver as mulheres ao lar, com a missão de que cumpram o papel do cuidado e bem-estar social que deveria ser missão das instituições do Estado. Ainda, mostra os requintes da violência exercida nas redes pelo chamado “gabinete do ódio” e por grupos paramilitares e policiais que permeiam as diversas esferas de poder estatal.
Frente a esse panorama desalentador, o caminho sugerido por Rita Segato começa por uma proposta aparentemente minimalista de domesticação da política, que inclui desburocratizá-la e humanizá-la, ao mesmo tempo em que politizamos e valorizamos economicamente a esfera do doméstico: desenvolver políticas intra e extraestatais, a partir das comunidades, das pessoas, reconstruindo vínculos de laços sociais, resgatando estilos de negociação, representação e gestão acumulados na experiência histórica das mulheres (Segato, 2016).
E para terminar com uma mensagem de esperança, só resta dizer que nunca foi tão atual a obra de Friedrich Engels “A Família, a Propriedade Privada e o Estado” (1884), que, citando o antropólogo e etnólogo americano Lewis Henry Morgan, finaliza assim sua obra:
“A dissolução da sociedade ergue-se, diante de nós, como uma ameaça; é o fim de um período histórico – cuja única meta tem sido a propriedade da riqueza porque esse período encerra os elementos de sua própria ruína. A democracia na administração, a fraternidade na sociedade, a igualdade de direitos e instrução geral farão desapontar a próxima etapa superior da sociedade, para a qual tendem constantemente a experiência, a razão e a ciência. Será uma revivescência da liberdade, igualdade e fraternidade das antigas gentes, mas sob uma forma superior (Morgan, A Sociedade Antiga, pág. 552).”
A história é maior do que seus momentos específicos e já podemos começar a transformá-la.
Referências: Bauman, Zygmunt. Globalização: as consequências humanas./ Engels, Friedrich. Origem da Família, da Propriedade Privada e do Estado. / QUIJANO, Anibal. Colonialidade do poder, eurocentrismo e América Latina. Em: A colonialidade do saber: eurocentrismo e ciências sociais. CLACSO, Buenos Aires, 2005. /Segato, Rita Laura. La guerra contra las mujeres. Editora Traficante de Sueños, Madri, 2016.