Digamos que nossa afeição por personas políticas como George W. Bush ou Donald Trump não se situe lá nas alturas. Vai dizer que é fácil reconhecer quando tipos assim tomam atitudes que francamente nos agradam – o que de todo modo não acontece a toda hora do dia, é claro. Mas para ser bem honesto, quando os talibãs bombardearam e destruíram as esculturas dos imensos Budas de Bamiyan, em março de 2001, eu disse cá com meus botões: por que o Bush não toca a corneta dando a ordem de ataque para a cavalaria e bota para correr essa turma de celerados? Bom, é claro que a cavalaria já estava por lá, e não era exatamente para defender patrimônios culturais da humanidade mas, enfim.

Agora, eis que de novo nos surge a inolvidável figura do quadragésimo quinto presidente americano para fazer bater forte nossos corações. Na 75ª Assembleia das Nações Unidas, Trump afirmou: “Nos primeiros dias do vírus, a China proibiu as viagens dentro do país enquanto permitia que os voos deixassem a China e infectassem o mundo.” O compatriota e prêmio Nobel de Economia Paul Krugman diz que Trump “é um mentiroso patológico, o homem mais desonesto que já ocupou a Casa Branca”. A Casa Branca, para quem ainda não se deu conta, não é exatamente um lugar onde esse tipo de prática ou essa classe de patologia (para usar a terminologia do economista) seja rara. Seymour Hersh, o mais premiado dos jornalistas independentes americanos, se referia a Henry Kissinger, por exemplo, outro dos que por um longo período percorreu os corredores da mansão, como “aquele homem que mais mente que respira”.

Portanto, se em algum momento e por qualquer razão Donald Trump diz algo que soa verdadeiro ou que seja de fato verdade, uma simples verdade, uma singela repetição de fatos ocorridos num determinado momento da vida na terra, deveríamos aplaudir e dar o merecido destaque. Como ocorre na oração acima: 1) “nos primeiros dias do vírus” – verdade. 2) “a China proibiu viagens dentro do país” – verdade. 3) “enquanto permitia que os voos deixassem a China” – verdade. 4) “e infectassem o mundo” – verdade. Por incrível que pareça essa frase inteira emitida pelo 45º presidente americano é verdadeira e por essa razão deverá ou deveria entrar para a história.

Mas, pobre Trump, mal emite uma sentença que poderia lhe conceder uma breve estadia no purgatório antes de despencar nas chamas eternas do inferno e já cai num pecado que anula a virtude anterior. Porque quando não mente, pratica a nobre arte da hipocrisia. Naquele mesmo discurso havia também juízos de valor: A China deveria ter parado (o vírus) em sua fronteira… não deveriam ter deixado (o vírus) se espalhar por todo o mundo e isso é terrível. E tais juízos de valor são ainda mais importantes, já que envolvem o dever dos países e seus governantes. O que deveria ter feito o governo chinês e não fez – ou fez apenas parcialmente. E o que, consequentemente, deveria ter sido feito pelos demais – e absolutamente não fizeram.

Por que a China controlou a pandemia que apareceu na China?

Quem deu a resposta à pergunta acima foi precisamente Trump. No referido e histórico discurso de sete minutos no qual num surto até agora inexplicável o presidente disse a simples e boa verdade (o que, aliás, deveria lhe servir de lição: a verdade liberta, sr. presidente, diga sempre a verdade e todos nós o amaremos e respeitaremos – do contrário, Deus castiga): o governo chinês proibiu os deslocamentos internos o que lhe permitiu, junto a outras medidas, controlar a pandemia. No meio da semana que se encerra, comemoraram 45 dias sem o registro de um único caso e apenas 19 vindos do exterior. Simples assim. Ordem do PCC, cumpra-se. Por que? Porque lá por janeiro ou fevereiro, todo mundo já sabia que o vírus se esparramava a taxas dramáticas e que a única maneira de impedir sua expansão era a que foi adotada pelo governo chinês: confinar e tratar os infectados massivamente e fechar as fronteiras por onde o vírus pudesse se expandir para impedir novos contágios.

No resto do mundo, enquanto isso, os governos, a quem cabe animar as atividades de prevenção relativas à saúde pública e as iniciativas da comunidade científica, ficavam a ver navios, aguardando a chegada dos primeiros turistas chineses com seu habitual apetite de compra, mas agora infectados com o poderoso patógeno. Era só uma questão de horas, dias. E eles rapidamente chegaram, sem que ninguém movesse uma palha. O vírus simplesmente cumpriu o que dita sua natureza. O vírus não pensa. Não faz escolhas morais. Ele circula. É apenas um vírus. Precisa circular. É assim que realiza sua natureza de vírus. (Como a mercadoria, lembram?)

Assim, na sequência necessária da frase de Trump cabe a mais singela das perguntas: por que o Ocidente não proibiu a entrada de qualquer pessoa saída da China? Se a China não fez o que deveria ter feito (“A China deveria ter parado o vírus na sua fronteira.”), por que o ocidente deixou de fazer o que obviamente podia (e devia) ter sido feito? Se a China podia fazer, o Ocidente da mesma forma poderia e deveria. Ou algo me escapa?

A curiosa definição de um entrepeneur e cientista social chinês

Agora mesmo, enquanto o ministério da saúde da Espanha (PSOE-Podemos) determina fortes medidas restritivas para a capital, o governo de Madri (PP), centro atual da segunda onda na Espanha e na Europa, resiste. A queda de braço dura uma semana e se intensifica. Decidir em nome da res publica implica contrariar setores poderosos da iniciativa privada.

Talvez seja uma simplificação, mas é também uma história curiosa. Entrevistado para A Nova Guerra na China (John Pilger, 2016) o cientista social e entrepeneur Eric Li disse: “A China é uma economia de mercado… vibrante, mas não é um país capitalista. Eu vou te dizer por quê. Não há como os multimilionários controlarem o politburo como controlam a política americana. Na China existe uma economia de mercado, sim, mas o capital não está acima da autoridade política. O capital não tem direitos estabelecidos. Nos Estados Unidos, os interesses do capital e o próprio capital se colocaram acima da nação americana e a autoridade política não controla o poder do capital. É por isso que os Estados Unidos são um país capitalista e a China não.”

Passado quase um ano desde que o vírus atingiu a Europa e logo o resto do planeta, o número de mortos ultrapassou a cifra de um milhão (“que são mais de um milhão”, como anotou o El País, e poderia ter acrescentado: possivelmente bem mais de um milhão), está claro que no mundo onde não se tomam decisões, não da mesma forma como as que tomam os pós-comunistas chineses (ou o que forem), uma decisão está tomada, está sendo rigorosamente implementada e, até onde se vê, é irreversível: morram um, dois, três, ou quantos milhões de seres humanos tiverem que morrer, a máquina não será mais paralisada. A circulação de mercadorias não será interrompida para salvar vidas. Que se corra atrás da vacina, muito bem, que a apliquem. Ótimo. Mas não se ouse nem pensar em outras pausas nas linhas de produção. As empresas não farão sacrifícios em nome da saúde de seres vivos.

À diferença da primavera, agora, no começo do outono, as principais entidades científicas têm demonstrado muito mais energia e enfaticamente estão alertando para a insuficiência das medidas tomadas pelo poder público e que, na forma como estão atuando, os governos continuarão sendo atropelados pelos fatos – não tardarão a aparecer também versões amenizadoras e outras diversionistas, porque o sistema de propaganda e contrapropaganda atua sem trégua e para ele não falta dinheiro.

Uma das resultantes desses nove meses de pandemia é que escancararam o famoso óbvio ululante que nos acostumamos a deixar de lado, como se fosse fato irrelevante. É como se o morticínio viesse para nos mostrar que, não, não é irrelevante que grandes empresas e multimilionários controlem, autoritariamente e de costas para o mundo, o poder e as políticas dos países.