O mais interessante na vitória do economista Luis Arce Catacora – com o ex-chanceler David Choquehuanca como vice – na disputa pela presidência do Estado Plurinacional da Bolívia, neste último domingo (18/10/20), é que o resultado repôs a verdade política da Bolívia. E rechaçou, com veemência, o golpe de Estado de 12 de novembro de 2019. A direita não se sustentou. Mais da metade dos eleitores reafirmou o resultado da eleição do ano passado e devolveu o cargo ao Movimiento al Socialismo. Seu candidato e ex-ministro da Economia venceu já no primeiro turno. O MAS volta ao governo exatos 12 meses depois do golpe que afastou o presidente Evo Morales.

Seguindo a cartilha aplicada no Brasil, Paraguai e Venezuela, o candidato de direita derrotado por Evo no ano passado (o mesmo Carlos Mesa, novamente derrotado agora) questionou a legitimidade do resultado daquela eleição e abriu uma crise política que se expressou com extrema violência de rua e se estendeu de 20 de outubro a 12 de novembro.

Militantes de extrema direita ocuparam meios de comunicação, proibiram os noticiários, agrediram fisicamente vários integrantes do governo, do Parlamento, do Tribunal Eleitoral, governadores, prefeitos, invadiram e depredaram a residência de Evo e incendiaram as de uma irmã do presidente e dos governadores de Oruro e de Chuquisaca.

No município de Vito, departamento de Cochabamba, em 7 de novembro uma turba de ultra direita invadiu e incendiou a Prefeitura, sequestrou a prefeita Patrícia Arce, cortou seus cabelos, cobriu-a de tinta e a obrigou a caminhar vários quilômetros, descalça, sobre pedras e vidros, sob ofensas e agressão física.

Hegemonizada pelos governos conservadores do continente, no dia 10 a Organização dos Estados Americanos (OEA) deu razão aos queixosos. Isso fortaleceu as manifestações de rua da oposição e inspirou o pronunciamiento militar. Lideradas pelo general Williams Kaliman Romero, no dia 11 as Forças Armadas e a polícia se amotinaram e exigiram a renúncia do presidente da República. No dia 12, Evo Morales renunciou, assim como seus sucessores constitucionais, o vice-presidente Álvaro García Linera e Adriana Salvatierra, presidente do Senado. Evo seguiu para o exílio no México e, depois da posse de Alberto Fernández na Argentina, aceitou seu convite e se estabeleceu em Buenos Aires.

Denúncia Fraudulenta

Dias depois do golpe, o Center for Economic and Policy Research (uma consultoria em política econômica, com sede em Washington) anunciou o resultado de sua revisão dos dados da OEA, tendo concluído que “a análise estatística dos resultados eleitorais e das atas das eleições de 20 de outubro na Bolívia não mostrou que irregularidades ou fraudes tivessem afetado o resultado oficial”, o que validava a vitória de Evo Morales.

À mesma conclusão chegaram, neste ano, os pesquisadores Nicolás Idrobo e Dorothy Kronick, da Universidade da Pensilvânia, e Francisco Rodríguez, da Universidade de Tulane, ambas dos Estados Unidos. O blog jornalístico The Intercept Brasil informa que o influente “New York Times neste domingo (18) publicou um artigo em que afirma que foi na verdade a auditoria da OEA, e não a eleição boliviana, que estava ‘marcada por irregularidades’ (…). ‘Um exame atento dos dados eleitorais sugere que a análise inicial da OEA que levantou dúvidas sobre fraude eleitoral – e contribuiu para a deposição de um presidente – foi falha’.”

O funcionário Luis Arce

A reafirmação da preferência popular pelo MAS jogou no lixo as pretensões de duas lamentáveis figuras da política boliviana. O segundo colocado nesta eleição, Carlos Mesa, já ocupou, muito brevemente, o Palácio Quemado, sede da presidência. Em 2002 foi eleito vice-presidente do segundo mandato de Gonzalo Sánchez de Lozada, que renunciou ao cargo 14 meses depois, derrubado pelas manifestações e greves que paralisaram o país em protesto contra o aumento do GLP (o “gás de cozinha”), resultado imediato da privatização de sua exploração e fornecimento. Carlos Mesa então assumiu a Presidência. Porém, também renunciou, 17 meses depois, por recusar-se a implementar a nacionalização dos hidrocarbonetos, decidida pela população no Referendo sobre o gás, obtida por pressão do MAS do então camponês sindicalista Evo Morales.

O terceiro colocado, Luis Fernando Camacho, é um bufão autointitulado “Bolsonaro boliviano”, desconhecido no próprio país há um ano e meio. Advogado, empresário, ex-presidente do Comitê Cívico pró-Santa Cruz (de la Sierra, a maior cidade da Bolívia), adotou um discurso neopentecostal. Minutos antes da renúncia de Evo, infiltrou-se no palácio Presidencial, onde se fotografou com uma Bíblia sobre a bandeira do país. Candidato pelo partido ultra direitista Creemos, conseguiu escassos 14% dos votos na eleição do último domingo.

O novo presidente, Luis Arce Catacora, de 57 anos, filho de professores, é um economista com mestrado no Reino Unido e funcionário concursado do Banco Central da Bolívia, onde ocupou diversos cargos. Durante 13 anos foi Ministro de Economia e Finanças Públicas dos governos de Evo Morales (licenciou-se por dois anos para o tratamento de câncer renal, em São Paulo). É apontado como o arquiteto da política do “milagre econômico boliviano”, que assegurou ao país o maior índice de crescimento do continente, com média de 5% ao ano, redução da inflação (quase 2% em 2018), estabilidade cambial, desenvolvimento econômico e transferência de renda para redução da pobreza de 63% para 35%, segundo o Banco Mundial. Incentivou o mercado interno e a industrialização de recursos naturais, fortaleceu as empresas estatais e nacionalizou o setor de hidrocarbonetos, que ele considera um dos pilares da economia boliviana.

Oferta de pacificação

No ano passado, alguns dias depois de ter sido vilipendiada por fascistas nas ruas de Vito, a prefeita Patrícia Arce voltou ao cargo e comentou: “Eles podem ter cortado meu cabelo, me batido, mas minhas ideias ainda estão intactas”. Nesta segunda feira, dia seguinte à eleição, depois de saber da vitória de Arce e de que ela própria fora eleita senadora, disse: “Com trabalho, humildade e com o apoio do povo boliviano, recuperamos nosso país”. Esse tem sido o tom dos vencedores. Em sua página no Twitter, Lucho Arce escreveu: “Estou muito agradecido pelo apoio e pela confiança do povo boliviano. Recuperamos a democracia e retomaremos a estabilidade e a paz social”.

De Buenos Aires, onde ainda está exilado e de onde participou da coordenação da campanha do MAS, Evo Morales declarou que “devemos deixar de lado as diferenças, os interesses setoriais e regionais para conseguirmos um grande acordo nacional com partidos políticos, empresários, trabalhadores e o Estado. Juntos construiremos um país sem rancores e que nunca recorra à vingança”.

Lejos de los americanos

Editor do jornal latinoamericanista Versus nos anos 1970 e 1980, Omar de Barros Filho destaca um ingrediente fundamental para o retorno do MAS ao governo: a relativa debilidade dos Estados Unidos sob Trump, sem governança, sem organização, desinteligente na política externa, acossado pela Rússia, praticamente varrido do oriente médio petroleiro, fracassado diante da Venezuela, impotente frente à voracidade da China nos mercados ocidentais. Por isso não teve nem atenção nem operacionalidade suficiente para impedir o retorno da esquerda ao comando da Bolívia. Como disse algum democrata americano sobre os proclamados talentos de Trump, “a técnica necessária para vender imóveis não é suficiente para governar este país”.

Enquanto a diplomacia exterior americana se debate no atoleiro em que Trump a meteu, o MAS vislumbra um futuro promissor, com a hipótese de volta aos níveis de desenvolvimento econômico alcançados nos governos de Evo Moraes. Luis Arce anuncia que retomará os acordos para a exploração e produção do lítio em parceria com empresas chinesas e alemãs, sob controle estatal boliviano, que estavam sendo encaminhadas antes do golpe.

As reservas de lítio

Durante a campanha eleitoral, Arce sustentou que o golpe de Estado do ano passado “não foi contra o indígena, mas pelo lítio. (O golpe) foi desenhado por transnacionais interessadas na sua privatização, junto com a do gás”. Em torno disso, e tendo a Bolívia, o Chile e a Argentina no centro da próxima guerra mundial comercial, está o bem mais precioso, que brevemente deverá substituir o petróleo.

Sob o Salar de Uyuni (deserto de sal), no sudoeste da Bolívia, há estimados 9 milhões de toneladas de lítio, a maior reserva mundial, que vale mais de 150 bilhões de dólares. O Chile, com reservas calculadas em 7,5 milhões de toneladas, em 2017 foi o segundo maior produtor – 14,1 mil toneladas. A Argentina ocupa o quinto lugar em reservas, depois da China e da Austrália, com 2 milhões de toneladas. Mas é o terceiro maior produtor. Em 2017 produziu 5,5 mil toneladas. A extração do lítio da América do Sul tem a vantagem, em relação aos competidores americanos, europeus e asiáticos, de estar a poucos metros de profundidade, barateando seu custo.

Se for bem sucedida, a Bolívia se tornará um dos maiores produtores mundiais. “Com a industrialização do lítio, serão gerados 130 mil novos postos de trabalho diretos e indiretos, além de 14 novas indústrias que vão gerar ainda mais emprego para os bolivianos”, disse Arce. Isso significa praticamente 1% de toda a população. O ex-gerente executivo da empresa estatal Yacimientos de Lítio Bolivianos (YLB), durante o governo Evo, Juan Carlos Montenegro, disse que essas 14 fábricas “serão o núcleo da produção de 150 mil toneladas de lítio até 2025. Elas irão demandar insumos, como lâminas de cobre, e então serão necessárias as plantas destes insumos e mais outras sete de seus derivados. É um projeto grande para atender à demanda mundial”.

Segundo Montenegro, serão necessários investimentos de US$ 4 bilhões para este núcleo da produção e o país deverá ter rendimentos de pelo menos US$ 6 bilhões anuais pela produção de lítio e suas ramificações. Durante o governo de Evo Morales, foi criada uma usina piloto da YLB no Salar de Uyuni que emprega 1.200 trabalhadores e produziu perto de 250 toneladas de carbonato de lítio em 2018 e 430 toneladas em 2019.

Lítio, o ouro branco

Esse enorme interesse pelo lítio – utilizado como acumulador de energia em baterias, hoje principalmente as de celulares e laptops – está relacionado com o próximo salto industrial: a substituição dos derivados de petróleo como combustível automotivo pela eletricidade. A indústria automobilística mundial mudará proximamente todo seu processo produtivo para a fabricação de automóveis elétricos. E as baterias de lítio são o coração desses veículos, por serem mais eficientes, terem melhor desempenho e vida útil mais longa; são leves e têm ótima densidade de energia, o que garante uma maior autonomia. Além de, principalmente, produzirem energia limpa.

A maioria dos países do velho continente está ampliando as restrições às emissões dos gases responsáveis pelo efeito de estufa. Inglaterra e França proibirão as vendas de veículos com motor a combustão a partir de 2040. Dentro de cinco anos, 20% do comércio de veículos novos na China será de elétricos ou híbridos. Estima-se que dentro de 20 anos estarão rodando em todo o mundo 500 milhões de veículos elétricos, utilizando cerca de 3,6 bilhões de baterias de lítio.

Às vésperas da eclosão do mercado dos veículos elétricos, em apenas seis anos triplicou o preço dos compostos de lítio, cotado em 2018 ao valor médio mundial de 17 mil dólares por tonelada. Com seu plano de domínio do mercado produtor, embora tenha a terceira maior reserva, a China é hoje o maior comprador do “ouro branco”.

Calcule, portanto, a importância estratégica das reservas de 18,5 milhões de toneladas de lítio do triângulo dos salares de Uyuni (Bolívia), Atacama (Chile) e Hombre Muerto (Argentina).

E deste modo fecho a conta: a associação da China com a Bolívia proporcionará ao vizinho fundos suficientes para a retomada de políticas públicas bem sucedidas de infraestrutura, desenvolvimento, industrialização, educação e redução da pobreza. Além de oferecer um poderoso anteparo político frente ao “grande irmão do norte”.

De cujo quintal as tartarugas voltaram a fugir.

Veja também o artigo relacionado “Bolívia: os desafios para o MAS 2.0” de Duilio Monroy.