Não será uma tarefa simples a construção de um novo pacto nacional que possa preencher o esgotamento do acordo anterior, expresso grosso modo pela Constituição de 1988, que inclua políticas públicas, em especial programas sociais e o sistema previdenciário, e os mecanismos democráticos de gestão da política no país. Ainda mais, em um mundo em rápida transformação regressiva (do ponto de vista da renda das maiorias e dos direitos sociais e do trabalho) e em um país onde, nos últimos anos, impera a truculência como estratégia de hegemonia política, processo reforçado com as rupturas institucionais desde 2015/2016, e reforçado com a chegada ao governo do chamado “bolsonarismo”.
Estávamos aparentemente em uma rota batida para institucionalizar um regime de exclusão social e política, e formalizar de fato um ambiente em que a força de milícias rurais e urbanas garantiriam o controle e a extração de renda pelo domínio de áreas territoriais, no campo e na cidade.
Entretanto, e curiosamente, a pandemia e o quadro internacional funcionaram para jogar areia nesse mecanismo de marcha batida da insensatez. Por pressão internacional, o Brasil, que ocupa e incendeia reservas ambientais e de grupos sociais (indígenas, quilombolas) em nome da expansão da produção do agronegócio, madeireiras e garimpeiros, passou a ser questionado e foi se transformando no que o próprio ministro de Relações Exteriores, em cerimônia recente de formatura de turma de diplomatas, chamou de “pária internacional”.
No plano doméstico, a gestão da pandemia no país acabou colocando frente a frente ciência e superstição, vida e morte, o que acabou por provocar dissidências dentro do próprio governo (com a saída de ministros da Saúde, por exemplo). Provocou rupturas dentro do bloco eleito na onda do atual presidente da República, com a maioria dos governadores, por exemplo, que divergiram sobre a necessidade de isolamento social, e o consequente travamento da economia. Hoje, a divisão se reflete no debate sobre a produção e obrigatoriedade de aplicação das vacinas. Essas questões colocam em dúvida o rumo do que aparentemente estava sendo desenhado.
Vale observar, para além de tudo isso, outra questão, que coloca em dúvida o rumo escolhido – a questão chinesa. Há alguns anos, a China tem sido o principal parceiro comercial do Brasil, e fonte principal de nosso saldo comercial. De janeiro a setembro desse ano, pelos dados divulgados, a China foi o destino de 34,1% de nossas exportações (só para comparação, os dois parceiros seguintes, EUA e Argentina, foram destinos de 9,7% e 3,8%, respectivamente), contra 27,6% no ano anterior. A corrente de comércio com a China nesse mesmo período foi responsável por 28,8%, contra 24,2% no mesmo período do ano anterior (de novo, para este ano, os dois parceiros seguintes, EUA e Argentina, respondem por 12,4% e 4,2% respectivamente).
Quando falamos do saldo comercial nesse período é ainda mais gritante: a China responde por 68,2% do valor do saldo comercial (já tinha respondido por 56,1% no ano anterior, para o mesmo período), enquanto que a Argentina responde por 0,9% do saldo, e com os EUA temos déficit. A importância do comércio com a China não é apenas grande em volume, como é crescente. A China tem sido também o principal investidor no Brasil.
Enquanto isso, o atual governo brasileiro faz juras de lealdade em relação aos EUA, e as cumpre, em um alinhamento internacional que confronta os interesses econômicos objetivos do país e um posicionamento ideológico não visto há muito tempo na normalmente pragmática diplomacia brasileira.
A questão relacionada às definições quanto à implantação de tecnologia 5G nas telecomunicações é ainda mais complicada – nos últimos anos o principal item da pauta de importação brasileira da China, também nas importações nossa principal parceira, foram equipamentos de telecomunicações, cerca de 12,5% do total, ou seja, mais da metade do volume do que o Brasil importa da China (21,6% do total de importações e janeiro a setembro deste ano). Isso mostra que parte da base para a implantação da tecnologia chinesa pode estar montada, e a decisão de barrar a tecnologia da chinesa Huawei no 5G brasileiro pode atrasar em bastante tempo nosso acesso a essa tecnologia.
Assim, os rumos que estavam desenhados vão ficando inviáveis, e por isso mesmo, sujeitos à rediscussão. Nesse quadro, o atual governo parece sem rumo, tateando politicamente enquanto vê seu projeto de futuro se mostrar inviável.
Isso abre um importante espaço para a rediscussão de um projeto nacional e um pacto político de futuro, mas num cenário bastante complicado interna e externamente. Vamos passar por um processo duro, difícil de “moer no áspero”, como diziam os antigos. O debate está aberto, mas será um longo processo até a conclusão.
Nesse ambiente hostil dos pontos de vista econômico, social e político é que nos moveremos no próximo período. Para os que querem construir um país mais justo, menos desigual, ambientalmente saudável e soberano, vai ser uma tarefa dura. Mas melhor ter o espaço de disputa do que os rumos desenhados anteriormente.
Relacionado a este artigo, Terapia Politica publicou recentemente do mesmo autor: “O fim de um ciclo?”