Os impactos [das eleições nos EUA] são principalmente no campo do multilateralismo, no campo da reformatação das alianças norte-americanas com a China. Com Biden se terá a recuperação desses mecanismos múltiplos de liderança, mas sem deixar de lado a questão da supremacia e do militarismo. De qualquer forma, inicialmente ele terá que se voltar mais para dentro do que para fora. Os Estados Unidos são o centro da contaminação por coronavírus, eles estão enfrentando uma crise político-social muito grave e Biden terá que enfrentar uma quantidade muito grande de inimigos internos. A margem de manobra para mudar a política externa vai estar condicionada, primeiro, a resolver seus problemas internos.

Uma mudança importante será o intercâmbio com a China. Se Estados Unidos e China passam a trabalhar numa visão mais cooperativa, como se fosse um condomínio sino-americano, aí teremos um reposicionamento bastante diferente no sistema internacional. Se isso acontecer, eles tenderão a excluir os demais países do tabuleiro do grande poder global. Havia tentativas desde o governo Bush Filho e do próprio Obama de manter a política em relação à China, de engajá-la e conter e não de bater de frente, como o Trump tem feito, principalmente no campo comercial, econômico e tecnológico. Falam que a guerra com a China é comercial. Mas não é comercial, é uma guerra tecnológica pelo domínio da terceira, quarta, quinta Revolução Industrial, que tem a ver com cibernética, inteligência artificial, o 5G. E também os símbolos. A Huawei como símbolo de uma nova empresa, e o Tik Tok. A China produz o sonho americano hoje. Essa nova guerra entre Estados Unidos e China é muito relativa, porque a China traduz o sonho americano em seus produtos.

O que o governo Biden pode fazer? Reformatar essas relações e pensar no condomínio sino-americano, que é a aliança bilateral considerada a mais relevante para o encaminhamento das grandes questões globais. A China tem um poder geopolítico e geoeconômico muito mais construtivo do que o norte-americano. Hoje o norte-americano é basicamente militar. A China, não. Ela se baseia na tecnologia, nos investimentos, na cooperação. Se juntar esses dois países, o cenário muda muito.

Para a América Latina, a Era Trump foi muito grave. Ele já disse: estamos aqui reativando a Doutrina Monroe, vamos fazer valer nossos interesses, expulsar as influências malignas, como a influência chinesa. Já Biden seria uma continuidade da Era Obama. Pode mudar a tática, mas não mudará estruturalmente as relações nem com o Brasil, nem com a Venezuela, nem com o restante da região. Embora ele possa dizer que a Doutrina Monroe está morta, ela não está morta como concepção e realidade geopolítica de predomínio e garantia da influência norte-americana na região. Então, não virão grandes reformulações de relações no governo Biden. Mudará a tática, mas não haverá abertura de mercado, assim como não teve com Trump.

A presença da China na América Latina já é forte nos últimos 10, 15 anos. É um processo que começa logo no início do século 21 e vem se aprofundando. O governo Trump tenta barrar a China aqui na região tanto do ponto de vista político quanto do ponto de vista econômico. Só que a China já está aqui e o que oferece para a região os Estados Unidos não estão prontos para oferecer, que são investimentos em infraestrutura, parcerias para comprar nossas commodities… Esse espaço os Estados Unidos não vão ocupar. Eles não vão oferecer investimentos. Sua capacidade para isso no mundo é muito menor que a da China. O governo Biden terá que usar de outros mecanismos para barrar a China aqui no continente, mas isso é muito difícil.

Com um condomínio sino-americano deve haver a consolidação dessas duas potências no topo. Mas que isso gere outras oportunidades para os países que estão em outro nível vai depender dos interesses desses países em aderir a uma outra agenda político estratégica.

A direita no fim do túnel

As pessoas que valorizam regimes internacionais multilaterais, negociações ambientais, direitos humanos, uma postura mais equilibrada, até um renascimento do multilateralismo, um relacionamento menos conflitivo e mais produtivo para o mundo entre Estados Unidos e China, viram a possibilidade de uma derrota eleitoral de Trump como uma luz no fim do túnel.

Mas os Estados Unidos perdem de uma maneira geral. Se mantêm um país dividido, com gravíssimos problemas sociais que têm impactos para dentro e para fora do país. Um Estados Unidos instável dentro de casa tende a ser instável fora. As primeiras análises do declínio do poder americano, logo ao final da Guerra Fria, falavam no desequilíbrio que havia dentro dos Estados Unidos e do que eles precisavam fazer fora. Os Estados Unidos são um país dividido.

Eu vejo como positiva a derrota do que o Trump representa em termos de política, em termos de polarização, de aliança conservadora. Mas vejo com muita preocupação tanto nos Estados Unidos quanto em outros países, incluindo o Brasil, a quantidade de pessoas que ainda votam, que ainda se alinham com esse pensamento de extrema direita. E que a extrema direita consiga agregar um apoio que chega a 30%, 40%. A base do Trump chega a 40%. Um sinal de alerta se acende: continua essa divisão. É um cenário de instabilidade que vai continuar. Essas forças sociais continuam presentes e isso afeta tanto a política global quanto a política interna desses países, num processo de retroalimentação.

O Trump usou de um suposto comunismo que viria dos Democratas. Soube capturar um eleitor que não gosta do extremo progressista, não se sente à vontade com uma agenda como a do Bernie Sanders [senador socialista, pré-candidato à presidência pelos Democratas], ou uma agenda ambiental tão radical quanto a de Ocasio-Cortez [Alexandria Ocasio-Cortez, deputada federal de 31 anos, companheira de chapa de Bernie Sanders]. Ele está preocupado com seu dia a dia, se vai ter emprego, se vai poder mandar seu filho para uma universidade, o quanto vai pagar por isso, se vai poder comprar seu remédio. Os Democratas continuam enfrentando esse dilema, dentro e fora do poder. O grande problema do governo Obama, que ficou aquém daquilo que ele poderia, foi porque, principalmente nos dois primeiros anos de poder, ele teve como adversários não só os Republicanos, mas também os Democratas. Eles não conseguiam fechar uma frente unida para votar. E é muito provável que isso aconteça. A indicação do Biden faz o partido Democrata caminhar para o centro, para tentar recuperar esse eleitor perdido. A outra ponta do partido o puxa para a esquerda.

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O texto publicado é uma transcrição da fala da professora Cristina Soreanu Pecequilo na live organizada pelo Observatório BR, da Fundação Perseu Abramo, com o Diário do Centro do Mundo, o site 247 e a revista Fórum, na própria noite da eleição norte-americana (04/11/20). Além dela, participou o diplomata Celso Amorim.

Responsável pela transcrição: Paulo de Tarso Riccordi, do Terapia Política.