Lançado pela Netflix, o documentário apresenta a questão das possibilidades de indução e manipulação proporcionadas pelos mecanismos de comunicação e de busca nas redes sociais. É um problema extremamente importante, cujas consequências para nossas formas de organização social têm enorme amplitude. Este texto faz uma reflexão sobre as questões colocadas pelo documentário.

Assistimos, sobretudo na última década, um processo acelerado de desconstrução no país de uma série de valores associados a direitos humanos e sociais, que haviam sido incorporados à cultura política de nossa sociedade. A assimilação desses valores parecia fazer parte de um processo irreversível de avanço civilizatório, reflexo de uma sociedade em pleno processo de amadurecimento. O reconhecimento do caráter laico do Estado, o repúdio ao racismo e às diferentes formas de discriminação social, a luta pelo respeito aos direitos humanos e aos direitos das mulheres e minorias, todos esses aspectos foram, em maior ou menor prazo, se institucionalizando em nossa convivência social.

Ocorre que, em toda formação social, há dois mecanismos principais de educação e de coerção de comportamentos desviantes daquilo que aquele grupo considera como padrões a serem adotados em benefício da coletividade. O primeiro deles é a normatização positiva, manifesta-se no arcabouço jurídico construído e temido por essa coletividade; o segundo são formas de repressão mais subjetivas, porém não menos eficazes, associadas à censura do indivíduo pelo seu círculo social, quando o primeiro assume comportamentos rejeitados pelas normas culturais dessa sociedade. É aí que entram, com toda sua dimensão subversiva, os instrumentos de comunicação desenvolvidos na Era digital, notadamente as redes sociais.

Com efeito, o elemento principal de eficácia da censura como mecanismo de normatização social é a sensação de isolamento e rejeição produzida no indivíduo censurado por aqueles do seu círculo de convivência, e o consequente aspecto ameaçador dessa “punição”. Entretanto, os instrumentos de comunicação social estabelecidos pelas redes digitais, dotados de uma escala revolucionária, vieram a transformar completamente esse processo. Não só o círculo social do indivíduo se ampliou enormemente, ultrapassando largamente aquele núcleo próximo com o qual interagia fisicamente, pela inclusão de inúmeros interlocutores virtuais, mas, muitas vezes, a importância do próprio núcleo se desfaz diante do oceano de novas possibilidades de relação oferecidas pelas redes sociais.

A aceitação por parte do entorno social deixa de ter a dimensão que possuía, e o anátema do grupo perde grande parte da feição ameaçadora, que lhe conferia eficácia como instrumento normativo dos comportamentos.

Nesse novo cenário, o indivíduo não se sente mais impelido a reprimir desejos e condutas outrora considerados ofensivos à comunidade, por receio da segregação afetiva decorrente da rejeição pela coletividade. Pelo contrário, agora ele dispõe em seu horizonte de grupos muito mais numerosos de outros indivíduos que compartilham dos mesmos impulsos e concepções condenados pelo seu entorno.

Na diversidade das redes sociais, ele encontrará as comunidades que alimentam as mesmas tendências e visões de mundo que as suas, em número expressivo, de tal modo que a sensação de isolamento afetivo se desfaz quase que de imediato pelo acolhimento virtual dos assemelhados. Os consensos sociais se dissolvem assim, na relatividade da diversidade infinita de possibilidades. As condutas aberrantes encontram abrigo na rede. Há as comunidades em que se pratica livremente o racismo, o preconceito, em que se celebra a violência como valor fundamental, como, talvez, haverá uma que reúna assembleias de pedófilos…

Esse é um elemento perturbador. A história da civilização vem a ser a história da repressão aos comportamentos degradantes e desumanizantes. Se esses comportamentos forem desencapsulados pela naturalização proporcionada por algum nível de aprovação pública, ainda que segmentada, a regressão à barbárie será o que nos aguarda.

Estamos, pois, possivelmente colocados diante de um enorme desafio, de aparência paradoxal: disciplinar as formas de interação social, com o objetivo de resguardar nosso próprio pacto civilizatório, sem violar os princípios fundamentais de liberdade, que justamente constituem o pilar sobre o qual se assenta a ideia de uma sociedade humanista.

Documentário em: https://www.netflix.com/br/