Tenho mostrado neste Terapia Política as inconsistências teóricas, metodológicas e discursivas, bem como os malefícios econômicos e sociais das políticas governamentais filiadas à tradição neoclássica – tradição essa, como analisado por inúmeros e qualificados especialistas, revisitada nos últimos 30/40 anos em perspectiva denominada neoliberal. Na presente reflexão não vou me circunscrever a esse temário, mas apenas, como preâmbulo, sublinhar o fato do quanto a adoção dessas políticas aprofundou os problemas econômicos e sociais, tanto alhures quanto aqui – no último caso, o brasileiro, isso aconteceu especialmente a partir do momento em que elas foram radicalizadas com Temer/Meirelles e, sobretudo, Bolsonaro/Paulo Guedes.

A dramaticidade daí resultante está à vista de todos. Para tal, basta caminhar pelas ruas das nossas cidades, de norte a sul, e observar o aumento pronunciado do contingente de pessoas morando nas ruas (em situação de rua), de vendedores de mercadorias nas calçadas dos seus centros comerciais e o de lojas fechadas com os cartazes de “vende-se” ou “aluga-se” colocados em suas portas.

Em síntese: somente muita cegueira ideológica para não ver o que veio de ser aludido e acreditar que com mais do mesmo, ou seja, com o eterno receituário das sempre ditas imprescindíveis e inadiáveis reformas liberalizantes, o milagre do crescimento econômico (com geração de empregos) sentará praça entre nós. Infelizmente, a verdade é que não o fará como tampouco o fez em qualquer parte do mundo capitalista desde o seu surgimento (Inglaterra, Primeira Revolução Industrial, 1770-1830). Logo, mantida essa política não há como imaginar qualquer redenção nos termos assinalados, da economia e do social propriamente dito, para a população (melhor, para a ampla maioria dela), os espaços nacionais (quaisquer que sejam eles) e os entes federativos subnacionais (estados e municípios).

Feitos esses sucintos comentários, trivial dizer que é nesse cenário, além da tenebrosa pandemia de Covid-19, que se realizará o pleito municipal do corrente ano. Mais detidamente, que ele acontecerá em ambiente, dentre outros aspectos: de grave rebaixamento salarial; de precarização das relações trabalhistas (dada a crescente liquidação dos trabalhos protegidos ou formais); de intensificação da exploração da mão de obra (vide a respeito o fenômeno da chamada uberização); de aumento pronunciado do desemprego; de expressiva elevação dos preços (tanto no que se refere aos itens da chamada cesta básica quanto no que concerne aos importados por conta da monumental desvalorização do real diante das principais divisas internacionais); de aumento significativo da concentração da renda e da riqueza; e, de contração do mercado interno (por conta do achatamento salarial, da liquidação de postos de trabalhos, do recuo das decisões de produção e de investimento do empresariado etc.).

Também compõe esse cenário: a redução dos recursos públicos destinados às áreas da saúde, da educação, do meio ambiente, da ciência e tecnologia, da habitação popular, das obras de infraestrutura; da desvalorização do valor do dinheiro aplicado nas tradicionais cadernetas de poupança, e.g., do seu poder de compra, posto que os atuais fatores de correção não estão repondo sequer o valor da inflação (o que penaliza severa e principalmente a chamada classe média – em sua maioria pouco afeita ao mercado financeiro propriamente dito); a falta de apoio às pequenas e médias empresas; e, a inexistência de qualquer horizonte expectacional positivo para a expansão da capacidade produtiva da economia.

Não fora bastante, quase todos os brasileiros estão vivendo sob a ameaça permanente de perderem mais direitos sociais e trabalhistas, como exemplificado pela proposta de eliminação da devolução dos gastos relativos ao pagamento de planos de saúde privados na declaração de ajuste do Imposto de Renda, de ‘privatização’ do Sistema Único de Saúde (SUS), de sucateamento proposital das instituições públicas de ensino e pesquisa, de destruição do meio ambiente etc. Em resumo: o conjunto da obra neoliberal (incluindo-se aí a nossa notável insociabilidade na escala-mundo por conta da atual política diplomática) mostra-se muito ruim sob qualquer ângulo ou aspecto que ele seja examinado. Haja ‘circo’ e fé para segurar a onda (…).

É exatamente nesse contexto, aqui apenas esboçado, dadas as tantas outras ilustrações e análises que poderiam ser acrescidas sobre a atual vida societária brasileira, que as próximas eleições acontecerão em cerca de 5.500 municípios e movimentarão aproximados 150 milhões de pessoas (eleitores). Mas será que apesar de tudo o que se expôs cabe alimentarmos alguma esperança em um futuro melhor por conta delas – as eleições/2020? De outra maneira: será que essas eleições poderão ao menos abrandar as perversas condições de vida da imensa maioria da nossa população? Em plano mais geral, penso que não. Explico em seguida esse entendimento…

Em primeiro lugar porque o quadro partidário nacional, com mais de 30 agremiações, não ajuda a sociedade a discernir quem é quem no jogo eleitoral. Caricaturando: para ela, em sua maioria, partidos são letras e, principalmente, números. Claro que a nossa baixa consciência cidadã não é determinada somente por esse fato. Não obstante, por causa, defendo a redução do número de partidos atualmente existentes, posto eles conspirarem abertamente contra a necessária e urgente civilização da vida brasileira – através do mecanismo conhecido como cláusula de barreira.

Ademais, vale lembrar que definitivamente não temos trinta e poucas distinções político-ideológicas e programáticas – muito pelo contrário (volto a esse tema no item seguinte). Por fim, anote-se que tenho plena consciência acerca da complexidade dessa discussão (…), mas insisto que, dada a história da formação social brasileira, de baixa intensidade/densidade democrática, sem a aludida redução o grosso da população brasileira continuará indo às urnas, especialmente nas eleições proporcionais, e votará por critérios os mais acríticos e díspares possíveis.

Em segundo lugar porque, como enunciado logo acima, não temos – num certo “tour force” – senão quatro grandes blocos político-ideológicos (isto é, agremiações partidárias com evidentes diferenças doutrinárias, programáticas e propositivas), a saber: os mais à direita (PSL, PRTB, PTB, Patriota etc.), os mais à esquerda (PSTU, PSOL, PCB, PCO etc.), os de centro-esquerda (PT, PC do B, PSB, PDT, Rede Sustentabilidade etc.) e os de centro-direita – ou, como os denomina a mídia, os do Centrão (PSDB, DEM, PSD, PMDB, PP etc.).

Em vista desse quadro político-partidário, salvo melhor juízo, as próximas eleições deverão ser vencidas pelas forças que denominei de centro-direita, dada a sua estruturação nacional, assim como por conta dos importantes apoios financeiros que elas acessam. Isso fica mais evidente quando consideramos que as forças políticas situadas mais à esquerda possuem notórias dificuldades para levar as suas concepções e propostas à população, as de centro-esquerda continuam vivenciando desgaste junto ao eleitorado (independentemente aqui de qualquer análise e julgamento de valor) e as situadas mais à direita não deverão encontrar na atual conjuntura cenário político tão favorável como o verificado em 2018 (aqui, neste ponto, abre-se uma fresta de luz – voltarei a ele ao final do artigo).

Sendo assim, como as tais forças de centro-direita são fiéis seguidoras dos cânones neoliberais, insensíveis às reais demandas da população, avessas ao que chamávamos tempos atrás genericamente de interesses nacionais e, ao fim e ao cabo, operadoras dos interesses da “casa grande” não vejo, também por esse ângulo, como esperar por mudanças progressistas no plano nacional – pelo menos expressivas – com as novas câmaras e administrações municipais que serão consagradas pelas urnas neste mês de novembro.

Em terceiro lugar, por conta da monumental crise econômica e das políticas de ajuste cobradas pelo executivo federal, o poder municipal vem ‘assistindo passivamente’ ao aumento das suas dificuldades para fazer frente inclusive às competências legais que lhe são atribuídas pela Constituição Federal de 1988 (oferta de ensino fundamental, atenção primária à saúde etc.). O que veio de ser anotado pode ser ilustrado pelos parcos recursos fiscais próprios, pela sobeja dependência das transferências intergovernamentais e pela recorrente solicitação de prorrogação das suas dívidas (municipais).

Nesses termos, as eleições em tela deverão reiterar, no limite, o de sempre: o ‘simples’ arrebanhar de votos pela maioria dos partidos junto a uma população tratada como massa e a legitimação da democracia representativa tão somente na sua forma. Por conseguinte, conhecendo um pouco da história brasileira e a conjuntura mais recente, reitero que a tendência é a de que as administrações municipais, consideradas no seu conjunto, pouco farão para pelo menos atenuar o degradante quadro socioeconômico local espalhado pelo país.

Em quarto lugar, outra dificuldade, é que a maioria das pessoas considera eleições municipais como fenômeno estritamente local. Vale dizer: essa maioria tende a isolar tais eleições do todo nacional, bem como a desconsiderar as estruturas partidárias verticalizadas e seus respectivos alinhamentos político-ideológicos. É assim, dadas essas equívocas percepções, que ela supõe poder exercer alguma influência, posto julgar ‘conhecer’ os candidatos e, por causa, apresentar suas demandas em caráter pessoal – leia-se, de maneira atomística/não-cidadã. Portanto, elementar dizer que esse provincianismo, alienação política e o subjacente ‘toma lá dá cá’ facilitam sobremodo a reprodução do “status quo” conservador e antípoda, enfim, às causas populares e efetivamente democráticas.

Resulta dessas últimas observações e em parte das imediatamente anteriores que a imensa maioria da população municipal tem pouca ideia das possibilidades político-institucionais das prefeituras – em que pese às dificuldades mais acima apontadas. Pode-se dizer, desse modo, que tal estado de coisas reafirma ao fim e ao cabo o menosprezo que ela, a população assinalada, atribui a esse momento tão especial da vida política nacional.

Nessa mesma linha, razoável dizer ainda que essa mesma imensa maioria populacional igualmente não se dá conta – infelizmente – que é partir das eleições municipais que emergem aqueles que deverão (ou deveriam) cuidar de assuntos tão prementes para a vida cotidiano-coletiva (e não apenas individual), como os são as creches para as famílias cujos pais precisam sair para trabalhar e garantir seus sustentos, a coleta de lixo, o abastecimento de água potável, a educação, a saúde, os transportes urbanos, as dinâmicas fundiárias e imobiliárias etc. E mais: que os que são consagrados pelo seu voto estarão adiante fortalecidos politicamente para a assunção de postos mais elevados na escala estadual e federal. Em suma: esse voto deveria ser imensamente valorizado e não julgado menor e isolado como se indicou e no mais das vezes acontece.

Em quinto e último lugar tudo isso assim se dá porque temos um problema quase atávico, o de nos termos constituídos historicamente como sociedade, como antes anotado, de baixa intensidade/densidade democrática. Não seria possível, é trivial, resgatar aqui e devidamente essa “démarche”. De qualquer maneira, quem estuda a história da formação social brasileira sabe o quanto os ‘de baixo’ foram secularmente apartados de direitos e poder, e dessa forma transformados em massas populacionais, eleitorais e de manobra.

Afora esse longo processo de destituição estrutural, também operando para essa estruturação societária, aliás, de longa data, temos o papel conservador-alienante das grandes empresas de comunicação existentes no país que, em regra, pouco contribuem para a formação mais consciente da população – antes pelo contrário. Na conjuntura mais recente, para agravar ainda mais tal situação, emergiram como atores políticos de peso as igrejas em geral e, em especial, as neopentecostais, bem como os grupos paramilitares (com notórios domínios territoriais) que, em seu conjunto, limitam a referida conscientização dado possuírem enorme capacidade de definição dos votos a serem depositados nas urnas (normalmente refratários à necessária mudança social).

Nesses termos, resta (ou restaria) concentrar esforços de sorte a garantir a eleição de um mínimo de vereadores efetiva e historicamente comprometidos com a superação do atual estado de coisas e, se possível, executivos municipais que pelo menos não contribuam com a barbárie e a insensatez em marcha. Talvez, dada à gravidade do momento, seja o que se deveria ou dá para fazer (…).

Por fim, para não dizer que não falei de flores, destaque-se o papel das grandes cidades brasileiras, em especial as capitais que, através das pesquisas de intenção de voto, vêm indicando que as candidaturas situadas mais à direita do espectro político nacional não estão ‘vingando’. Em sendo verdadeira essa sinalização abrir-se-á aí pelo menos uma fresta de luz, a saber: a de que não bastará mais falar demagógica e vaziamente em ‘Deus, Pátria e Família’ para ser eleito! Esse fato, reiterando, a se confirmar, talvez seja passo importante para a retomada minimamente civilizada da vida política do país. Que assim seja!