O período de 2005 a 2020 é extraordinariamente disruptivo da História. Os artigos reunidos no livro “A síndrome de Babel e a disputa do poder global” (ed. Vozes, 2020) acompanham um momento de mudanças intrigantes no sistema mundial e também na América do Sul, incluindo o Brasil, com uma reversão mais à esquerda na maioria dos países de 2015 pra cá, depois da intervenção americana na Síria e na América Latina.

Este livro trata da virada norte-americana, do impacto sobre a Europa, e algo sobre Rússia e China. E, na segunda parte do livro, o seu impacto sobre a América do Sul e, em particular, sobre o Brasil, que talvez tenha sido a principal operação bem sucedida do governo Donald Trump de intervenção externa e mudança de um regime democrático por um regime semi militar, que é o que nós estamos vivendo. Eu começo o Brasil com um artigo que escrevi em 2015, anunciando a natureza do golpe e da aliança dessa tribo de vira-latas com os financistas, para promover uma suposta salvação nacional pela via da privatização e da desregulação, à espera dos investimentos norte-americanos, mas mal conseguirão, se é que conseguirão, os dos chineses.

A maioria desses artigos foram escritos como parte da pesquisa das grandes transformações mundiais que faço no INEEP Instituto de Estudos Estratégicos de Petróleo, Gás Natural e Biocombustíveis.

Transformações mundiais

O primeiro grande fenômeno intrigante que me levou a este livro foi a virada gigantesca dos EUA se voltarem contra sua criatura e destruírem a ordem liberal internacional que eles construíram cuidadosamente durante o século 20, em particular depois da 2ª Guerra Mundial e depois de 1991. Os Estados Unidos tiveram uma vitória apoteótica depois de 1991 – ganharam a Guerra Fria, destruíram a União Soviética e assumiram o comando unipolar do mundo -, mas, em 30 anos, jogou a água e a criança fora. E se jogou contra as instituições e os regimes que eles mesmos haviam criado. Um fenômeno que não me lembro de outro na história do sistema interestatal capitalista.

Sim, o Hegemon é a única potência capaz de destruir a Ordem que cria. Essa é uma lei do sistema interestatal. Mas os Estados Unidos, em 1970, se desfizeram do regime de Bretton Woods que eles mesmos haviam criado em 1944 [para regulamentar o gerenciamento econômico internacional]. O que eles fizeram depois de 2017-2018, foi jogar-se contra toda a Ordem, todo o sistema de valores, contra todos os regimes e as alianças que haviam feito.

Foi aí que nasceu a metáfora que deu título a este livro, associada ao mito de Babel, na versão mais conhecida, brilhante, concisa, que é a que aparece no Torá dos judeus e no Velho Testamento dos cristãos: o povo criado por Deus sonha com a possibilidade de construir uma torre que chegue ao céu. Isso é, simbolicamente, recuperar o poder que perderam no paraíso e alcançar o píncaro ocupado por Deus. Talvez esse seja um dos textos em que apareça de forma mais direta e dura a natureza assimétrica do poder na relação entre Deus e os homens.

Então Deus vem à Terra e diz que é necessário dividi-los, porque senão eles ameaçarão o poder que ele monopoliza. Fragmenta o seu sistema de valor e cultural. É a ideia de que Deus em algum momento se sente ameaçado por suas próprias criaturas que crescem em capacidade, sabedoria e poder e ataca preventivamente, para destruir as bases de unificação e homogeneização ética de sua própria criatura. Você suporia: mas Deus deveria estar feliz porque sua criatura converge em um sistema de valores que é o seu. Ele desce à Terra e divide, arrebenta tudo, fragmenta, estilhaça e divide pelo mundo esses povos. E o faz não porque vai perder seu poder, ser derrotado. Não. Ele o faz como manifestação do seu poder.

Essa é a ideia central, que aparece no título desse livro. Essa ideia me apareceu, olhando para a dinâmica norte-americana e, em particular, olhando para a figura e o governo de Donald Trump. E, por isso, a disputa pelo poder global. Há uma estratégia nessa disputa. Não é uma entrega de poder, não é uma confissão de derrota. Ao contrário, é uma demonstração de poder. “Eu destruo o que eu fiz, porque por essa escada vocês estão subindo. Eu não vou deixar”. Essa estratégia “babeliana” se manifesta visivelmente em dois espaços nesse livro.

Um espaço: a Europa com a União Europeia, criada, instigada pelos norte-americanos, depois da Segunda Guerra. E foi apoiada quando Helmut Kohl promoveu a unificação da Alemanha e contou com o apoio do presidente norte-americano para fazer isso. Mas agora há um ataque direto à União Europeia, um estímulo ao estilhaçamento desta, tanto pela via política, como foi o Brexit, como, de forma muito mais violenta e indireta, durante essas duas últimas décadas, em que os Estados Unidos fizeram o bombardeamento sistemático dos países do Oriente Médio e jogaram sobre a Europa uma massa de refugiados que alimentou a reação xenófoba, direitista, dos poloneses, dos húngaros, dos tchecos, ingleses, alemães, franceses e por aí vai. Isso é, um ataque por baixo e é um ataque por cima. Um ataque com bombas e uma expulsão dos povos islâmicos em direção à Europa, movidos pela miséria e fome criada pela guerra feita pelos norte-americanos. E, por outro lado, o ataque político direto à União Europeia. Eis aí um lugar no qual a estratégia da síndrome de Babel se manifesta de uma forma catastrófica.

Não são ideias de Donald Trump. É mais complexo que isso. Ele não lê, se orgulha de não ler, não conhece nada sobre política, nada sobre política internacional. Mas seus generais conhecem. Há o processo que se move através ou por trás dele e mais além dele. Tem algo mais profundo e complexo do que esse personagem no limiar do grotesco, que é o que vai além dele. E o que vai além dele é o que tentei sintetizar com a expressão “síndrome de Babel”, essa reversão dos EUA que desmontam sua criação para sobreviver como poder. Num documento de 2017, os americanos abrem mão de serem líderes liberais, democráticos, sentam em cima de suas armas e impõem seus interesses.

Brasil e América Latina

O outro lugar é América do Sul. Depois do período dos primeiros 15 anos do século 21, os americanos passam a promover de forma ativa, desde o golpe em Honduras, a desunião, a fragmentação, o estilhaçamento da América Latina. Mais do que isso, a promoção ativa da polarização, jogando os latino-americanos contra si mesmos, como países, como classes, como grupos sociais, religiosos. No limite, a Europa ainda tem capacidade econômica de resistir. Mas no caso da América do Sul, a desintegração induzida, o ataque à Unasul, ao Mercosul, a tudo o que seja integração, tudo o que seja uma tentativa de construir uma pequena torrezinha de Babel. Com a agravante de que não há nenhuma alternativa compensatória do tipo econômico. A despeito das fantasias grotescas e quase religiosas desses financistas que arrebentaram a economia Argentina, estão arrebentando com a economia brasileira. Por sorte, estão provocando uma reação que começou na própria Argentina, agora na Bolívia, depois de amanhã deve ser no Chile e por aí seguirá, muito provavelmente.

O que aparece neste livro é essa mudança dos Estados Unidos arrebentando com a Europa, arrebentando com a América do Sul, porque não há nenhum interesse de propor, como na década de 50, durante a Guerra Fria, algo como um desenvolvimento, um crescimento… nada. Não há nenhuma palavra das autoridades americanas dirigida aos seus vassalos sul-americanos prometendo algo como crescimento, como desenvolvimento.

É a vassalagem pura e vagabunda de uma elite e de um grupo que alguém chamou de um bando de vira-latas, vira-latas ajoelhados. Uma coalizão civil, empresarial, religiosa, que se mantém. Do ponto de vista militar, a opção foi a vassalagem aos Estados Unidos, em troca de armas, entrega de território e de soldados para fazerem as guerras em nome do suserano.

Na vassalagem durante a Guerra Fria, o Brasil foi incluído no projeto desenvolvimentista dos Estados Unidos, com condições que favoreceram um crescimento econômico significativo. E criamos uma sociedade terrivelmente desigual. Mas nesta nova forma de vassalagem, não tem promessa nenhuma de vantagens econômicas. Não é apenas uma troca formal, contratual. “Você me vende as armas, eu pago e tenho acesso aos avanços tecnológicos dessas armas”. Não. Em contratos, você escolhe o suserano. Para países do tamanho do Brasil, você pode escolher seu suserano. Ou não escolhe nenhum suserano e assume sua independência. Escolhe por suas razões. Mas depois de 2001, em particular depois de 2008, é uma vassalagem com um país específico, os Estados Unidos, que são o país mais violento do sistema interestatal capitalista. Não reza o terço junto com você.

O Brasil está se aliando a um país que fez, depois de 2001, operações de guerra em 24 países do mundo. E neste momento segue em guerra e bombardeando sete países. Estamos olhando para um país que fez desde 2010 cem mil ataques aéreos no mundo. Só o governo de Barack Obama, lançou 26 mil bombas. Sem contabilizar os governos destruídos nesses 20 anos. Não se está falando de um país leitor de Bíblia, mas de um país assassino. E é desse país que o Brasil é vassalo. E parte daquelas bombas foram jogadas em cima de aliados que assinaram o mesmo contrato de vassalagem que o Brasil assinou, como o Iraque de Saddam Hussein.

Os Estados Unidos não são sempre a mesma coisa. Esse grupo de vira-latas agachados brasileiros não entende isso. Insiste em fazer aliança com um país que lia a bíblia e matava índios. Este, de agora, não é apenas uma especificidade de Donald Trump – é o país mais violento do sistema interestatal capitalista.

O Poder Global

Esta é uma maneira teórica de olhar para o sistema mundial, que privilegia o conceito e a realidade central do poder. O poder como algo que se expande a partir de si mesmo, cuja energia expansiva nasce de sua própria natureza como relação social, hierárquica, conflitiva, competitiva, e que move isso numa direção de expansão constante. Qualquer poder, independente da natureza específica do objeto sobre o qual ele esteja se exercendo. Não é apenas o poder econômico. Qualquer poder. O poder é, por si mesmo, algo explosivo e expansivo. Ele pode, durante algum tempo, ou por muito tempo, ficar paralisado, mas ele tem uma energia que o leva à expansão. O poder, por si mesmo, aponta na direção, sempre, de acumulação e de centralização de mais poder. E nisso, sem que tenha nenhuma predeterminação necessária para onde esse processo se expande. A única coisa que se poderia dizer é que esse movimento aponta na direção de um poder absoluto. E esse poder absoluto, dramática e tragicamente, é inalcançável. Porque se fosse alcançável essa centralização absoluta do poder global, o Sistema, se desintegraria.

Essa tendência é encontrável em qualquer situação de poder, em qualquer situação de poder territorial. A encontraremos na civilização egípcia, hitita, babilônica… Mas não há dúvida nenhuma de que esse fenômeno adquiriu uma natureza peculiar, específica e extremamente explosiva com o surgimento na Europa, entre o século 13 e o 16, daquilo que a gente chama de sistema interestatal. E que depois de algum tempo ainda produziu e incorporou, como uma peça desse jogo – que envolve como elemento central a guerra permanente -, a economia capitalista. O capitalismo aparece nesse processo a serviço da expansão do poder.

No caso dos chineses, contemporaneamente, isso é muito visível. Os chineses, que não são propriamente admiradores do capitalismo, estão usando o capitalismo como uma ferramenta de acumulação de riqueza, sim, bem-estar, sim, mas, também, de poder. Sobretudo de poder.

No caso do sistema interestatal capitalista, o poder se veste na forma dos Estados nacionais. Isso nasce na Europa e a partir de lá gera um efeito expansivo que conquista primeiro a própria Europa e depois, a partir do século 16, conquista o mundo. O sistema interestatal e o capitalismo completam esse processo de conquista do mundo a partir do modelo originário europeu, no final do século 20.

Agora, nós estamos em cima do momento em que esse sistema sofreu uma mega explosão com a incorporação de um império de 1 bilhão e 300 milhões de chineses, ao qual somou-se outro, o antigo império britânico na Índia. Com a incorporação em torno de 2 bilhões e 500 milhões de pessoas. Por mais que Trump tentasse inventar uma polarização artificial, não há condições de criar uma Guerra Fria com a China.

Com a eleição de Biden, vai haver um movimento inicial de retomada aparente de alianças próprias do cosmopolitismo liberal – a questão do clima, a relação com os europeus, com a OMS, com a ONU. Haverá uma retomada, retórica, das instituições criadas ou apoiadas por eles. Mas as tendências se manterão: o conflito de mercado com a China, mas com aproximação em questões em que há negociações possíveis. Com a Rússia, sim. No caso do Irã, haverá uma reabertura, mas não como antes. Mas daí para diante, não há como voltar às relações anteriores.

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Paulo de Tarso Riccordi fez a transcrição – não revisada pelo autor – da palestra do professor José Luís Fiori, realizada em 28 de outubro de 2020. O vídeo na íntegra se encontra em https://tinyurl.com/y69wwobm e o livro no seguinte endereço: https://www.amazon.com.br/S%C3%ADndrome-Babel-disputa-poder-global/dp/6557130498.

Adhemar Mineiro publicou recentemente aqui no Terapia Política o artigo “A volta do multilateralismo? “.