João Alberto Silveira Freitas, 40 anos, foi espancado e morto por seguranças do supermercado Carrefour, em Porto Alegre (RS), na véspera do Dia da Consciência Negra. O soldador João Beto, como era conhecido pelos amigos, morava em uma comunidade na Vila Farrapos, zona norte da capital gaúcha. Casado, ele deixa a esposa, a cuidadora de idosos Milena Borges Alves, 43 anos, e quatro filhos.

Saber-se negra é viver a experiência de ter sido massacrada em sua identidade, confundida em suas perspectivas, submetida a exigências, compelida a expectativas alienadas. Mas é também e, sobretudo, a experiência de comprometer-se a resgatar sua história e recriar-se em suas potencialidades”. Neusa Santos Souza, Tornar-se Negro, As Vicissitudes da Identidade do Negro Brasileiro em Ascensão Social, Rio de Janeiro, Graal, 1983, pp.17-18.

Há 12 anos, entre muitos e muitas, uma combatente também caiu. E aqui vamos nos lembrar dela, como um momento de memória e símbolo dos negros e negras desterradas, escravizadas e mortas pelo racismo.

Neusa Santos Souza, psiquiatra, ex-militante da Liga Operária e colaboradora do caderno Afro/Latino-América da revista Versus suicidou-se no dia 20 de dezembro de 2008, à tarde. Militante negra, autora de Tornar-se Negro, era doutora em medicina social e trabalhava na área de saúde mental como clínica, terapeuta e professora universitária.  Pessoa amada e admirada.

A Terra é sempre a tua negra algema

“Tu és o louco da imortal loucura,/ o louco da loucura mais suprema./ A Terra é sempre a tua negra algema,/ prende-te nela a extrema Desventura./ Mas essa mesma algema de amargura,/ Mas essa mesma Desventura extrema/ Faz que tu’alma suplicando gema/ E rebente em estrelas de ternura”. (“O assinalado”,Cruz e Souza, primeira e segunda estrofes).

Ao percorrer os caminhos das brasilidades ao longo dos últimos três séculos, encontramos as raízes que explicam a miséria da nação. As bandeiras da emancipação, da democracia e da justiça social continuam urgentes hoje tanto quanto em épocas passadas. Hoje, passados 120 anos do decreto que reconheceu o direito do povo negro à liberdade, a ideologia do ocultamento ainda se faz presente.

Para se compreender a cultura afro-brasileira é importante entender a religiosidade africana dos orixás. Apesar de sua diversidade regional, a matriz africana da religião dos orixás traduz, em seu conjunto, a cultura da família clânica, originária de um mesmo antepassado, que engloba vivos e mortos. 

O orixá é o ancestral divinizado, que em vida estabeleceu vínculos que lhe garantiram controle sobre determinadas forças da natureza. O poder desse ancestral, após sua morte, pode encarnar, por um curto período, em um de seus descendentes através de possessão provocada. É interessante notar que a morte desses antepassados não acontecia de forma natural, mas em meio a acontecimentos que envolviam paixão ou ira.

Nesse momento de crise emocional provocada por cólera e outros sentimentos violentos, sofriam metamorfoses, seus corpos eram consumidos pela paixão, restando deles apenas o poder. Mas, para que esse poder pudesse ser apropriado por seus descendentes, era necessário que membros da família enterrassem um vaso no chão, com cerca de três quartos de sua altura. Nesse vaso recolheriam o poder do orixá, que passaria a receber oferendas e o sangue de holocaustos. Esse culto unia homens e mulheres ao orixá, e suas emanações eram representadas por uma pedra, um seixo de rio ou por símbolos como ferramentas ou arco e flechas. Assim, o poder do orixá só se tornava perceptível através da incorporação, o que possibilitava ao orixá voltar à Terra para receber provas de respeito dos que o evocavam. 

Nos cultos ao ancestral, ao incorporar-se, o orixá recebia sua personalidade de volta com qualidades e defeitos, gostos, tendências, caráter agradável ou agressivo. Durante as cerimônias, os orixás dançavam com seus descendentes, ouviam suas queixas, resolviam desavenças e consolavam seus infortúnios. Dessa maneira, o mundo dos orixás não estava distante do fiel, nem era superior.

Em religiosidades na África, os orixás estavam ligados às comunidades e às nações e os cultos eram regionais e mesmo nacionais. Os cultos eram assegurados pelos sacerdotes, e os demais membros da família ou comunidade não tinham outros deveres senão o de contribuir com a manutenção e custeio do culto, podendo participar nos cantos, danças e festas que acompanhavam as celebrações. Deviam, porém, respeitar as proibições alimentares e outras ligadas ao culto do seu orixá.

Com o tráfico de escravos, os orixás foram trazidos para o Brasil com seus descendentes e permaneceram ligados às famílias que vieram para cá ou aqui se formaram. E os sacerdotes dos orixás passaram a manter o culto para essas famílias e comunidades.

Hoje, embora os não afrodescendentes não possam reivindicar laços de sangue com os orixás, podem existir afinidades que favorecem o culto. Afrodescendentes e não afrodescendentes, para os sacerdotes dos cultos aos orixás, têm arquétipos comuns, como a virilidade, feminilidade, sensualidade, independência ou desejo de expiação, que correspondem àqueles de um orixá. E, assim, essa religiosidade ancestral passou a ocupar seu espaço nos terreiros e comunidades de descendência negra, marcando presença definitiva na multiculturalidade brasileira.

Vivemos as aventuras e as possibilidades da utopia. Neusa, talvez exaurida por tantas lutas, escolheu o momento de retirar-se delas. Caiu uma mulher negra que lutou o seu combate! João Beto foi massacrado pelo racismo. Símbolos destes povos desterrados, escravizados ontem e hoje, permanece o sonho negro da liberdade: o resgate da história, cidadania e plenos direitos!

O artigo na íntegra foi publicado em: https://jorge-pinheiro.blogspot.com, 21.11.2020