
Já estava com raiva muito antes de tomar aquele soco. Raiva de tudo. De todo mundo. Só o que faltava era um soco para lhe estragar o dia. Primeiro veio o susto. Depois a reação. Vigorosa e violenta. Sentiu um prazer enorme em arrebentar a cara daquele preto. Colocou todas as frustrações naqueles socos e chutes. Terminou com a alma leve.
Durou pouco a paz de espírito. O corpo inerte do preto caído no chão, até então troféu do dever cumprido, estava morto. Entendeu logo que daria problema.
Foi levado para a delegacia e interrogado como se interroga um assassino. Ouviu quando disseram para jornalistas que foi um crime brutal motivado pelo ódio racial. Ninguém da empresa apareceu para ajudá-lo. Sabia que perderia o emprego. Acabou o dia preso.
No presídio, não foi tratado como os outros assassinos. “Você é diferente”, disseram. Teve a proteção que geralmente é dispensada aos policiais. Por não ser policial, não era odiado pelos presos. Apesar de tudo, achou que tinha sorte por isso.
Nas redes, as imagens do assassinato correram o mundo. Imaginou que gente enfurecida tomaria as ruas. Protestos realmente aconteceram. Pouca gente. Mais nas redes do que nas ruas. Por pouco tempo. Outros absurdos se impuseram à indignação pública. Quando foi levado para falar com um juiz, o caso era uma vaga lembrança para a maioria das pessoas.
O juiz lhe fazia perguntas objetivas sobre o que aconteceu e seu passado. Viu nisso uma oportunidade para dizer que sempre foi homem de bem. No dia, fez o que achou que deveria fazer. O que sempre fez. Voltou para o presídio sem a certeza de ter convencido o juiz.
No ócio da cela, pensava no que tinha acontecido. Não compreendia o porquê de estar preso. Matou uma pessoa violenta. Via-se pela cara, pelo comportamento, por tudo. Na sua profissão, não sabe como e nem porquê, conhece a intenção das pessoas só de olhar para elas. Tem certeza de que seu julgamento não falha. Aquele era o tipo que ele sempre viu como perigoso. E deu no que deu. Azar, pensava.
Na busca por compreender, procurou o pastor que aparecia no presídio todo domingo. Sujeito bacana. Dizia para ele que tudo na vida tinha um propósito. Ainda que não saibamos qual. Pensou em qual seria o propósito de passar por tudo aquilo. Concluiu que era uma oportunidade de aprender.
Aproximou-se dos outros presos para aprender. Sobre crimes, golpes, formas de matar. Aprendeu a ser mais esperto. Mais malandro. Da próxima vez, não daria mole para o azar.
Foi surpreendido pelo seu advogado numa quarta-feira. Tinha sido condenado, mas por ter matado sem intenção. Pelo tempo que já havia passado no xilindró, poderia ir para casa.
Foi recebido com festa e emprego. Comerciantes do bairro disseram que precisavam de alguém como ele para dar conta daquela gente perigosa. Aceitou feliz. Ouviu de um deles, diligente. “Só não volte a fazer isso na frente de todo mundo”. Finalmente, sua vida voltava ao normal.
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Sobre este mesmo assunto, leia também o texto “Racismo, linchamento e indiferença no Carrefour” e o artigo “João Beto – negritude e memória”.






