Na foto, a escritora Conceição Evaristo.

A tristeza não tem fim, diz um samba. Por isso, outro pede que a tristeza vá embora. Vá embora, mas não tanto, pois “para fazer um samba com beleza é preciso tristeza”. Tristeza, para Espinosa, é uma paixão negativa, ao contrário da alegria, que ele define como uma paixão positiva. Desde o samba e a Psicanálise é possível ver o positivo da lágrima, pois ela é necessária no amor e no humor. Um sorriso entre lágrimas é uma definição do humor, um abraço entre a lágrima e o sorriso.

Hoje, a sombra da melancolia caiu sobre o Brasil mais uma vez. Na verdade, não faltaram na nossa história tempos tristes de crueldade. Foram três séculos e meio de escravidão, 36 anos de ditaduras, racismo e violência sempre. A violência de hoje está na pandemia desprezada (“é só uma gripezinha”), que já contabiliza quase 190 mil mortos, 190mil famílias enlutadas. Não há reais preocupações com a Covid-19, a fome, o desemprego, por parte dos Poderes. Um Brasil frio, indiferente, sem norte, nessa longa quarta-feira de cinzas.

É difícil viver nas desgraças, mas os negros, na escravidão, quando caía a noite, cantavam e dançavam, para enfrentar a crueldade branca. É possível imaginar quantas tristezas já viveram os negros, os índios, ainda hoje atacados e mortos? As terras indígenas e as dos quilombos, reguladas por leis da democracia, estão sendo cobiçadas. Algumas já foram invadidas pelos brancos bilionários com apoio de todos os Poderes, até o das Forças Desalmadas. Que saudades do marechal Rondon, que amou os indígenas e foi amado por eles.

São tempos tristes, tempos de insensibilidade. No distanciamento, o real agora é virtual. Teremos que reaprender o sabor do amor para recuperar o calor. Sim, estamos frios, distantes, sem conversas presenciais, sem teatro, sem cinema, sem esportes. Nesses tempos difíceis convém aprender com os que viveram e vivem os efeitos da escravidão. Aliás, escrevi aprender e logo associei que mal aprendi a História do Brasil. Não aprendi as origens africanas na formação deste país, nem dos maus-tratos aos negros pela Casa Grande. Após a abolição da escravatura não ensinam que os negros foram relegados, os arquivos da escravidão queimados. Os negros não receberam terras, como os imigrantes, nem educação; foram marginalizados pela sociedade branca. Precisamos conhecer o Brasil que não está no retrato.

Conhecer, por exemplo, a incrível empregada doméstica, que fez faculdade, mestrado e doutorado e hoje é a escritora Conceição Evaristo, autora desta poesia:

Vozes-mulheres
A voz de minha bisavó / ecoou criança / nos porões do navio / ecoou lamentos / de uma infância perdida.
A voz de minha avó / ecoou obediência / aos brancos-donos de tudo.
A voz de minha mãe / ecoou baixinho revolta / no fundo das cozinhas alheias / debaixo das trouxas / roupagens sujas dos brancos / pelo caminho empoeirado / rumo à favela.
A minha voz ainda / ecoa versos perplexos / com rimas de sangue / e fome.
A voz de minha filha / recolhe todas as nossas vozes / recolhe em si / as vozes mudas caladas / engasgadas nas gargantas.
A voz de minha filha / recolhe em si / a fala e o ato.
O ontem – o hoje – o agora.
Na voz de minha filha / se fará ouvir a ressonância / o eco da vida-liberdade.

Conceição começa com a voz da bisavó nos porões do navio, segue com a voz da avó na obediência aos brancos-donos de tudo, e vem a voz da mãe na favela, a voz dela em versos com rimas de sangue, e a voz de sua filha com o eco da vida-liberdade. Este é um poema das vozes das mulheres negras, e já é mais que hora de as vozes brancas se somarem às vozes negras e índias para um Brasil antirracista. Tempos tristes, tempos de luto e luta na recordação dos mil dias do assassinato de Marielle. Quem mandou executá-la?