Preâmbulo

Em regra, as taxas de crescimento da economia brasileira são baixas ou mesmo medíocres desde o final dos anos 1970. É dizer: as quatro últimas décadas registram reduzidos níveis de investimento produtivo, consumo pessoal e geração de emprego. Exceções à parte (Plano Cruzado, 1986; Plano Real, 1993-96; Lula, 2007-10), o desempenho pífio da economia brasileira se mostra particularmente evidente se observada à chamada década econômica perdida (1980’s), a ‘fernandécada’ de Collor e Cardoso (1990’s) e o período que seguiu à ruptura institucional de 2016 (dada a adoção radicalizada de políticas sabidamente refratárias à geração de emprego e renda, as neoliberais). Tendo em vista essa problemática, a do crescimento econômico, examinamos em seguida dois temas imbricados e relativamente marginais nos debates dos economistas, mesmo entre os, digamos, progressistas, a saber: o da distribuição da renda e riqueza, e o da estrutura tributária.

Distribuição da renda e riqueza

Não precisa ser especialista para saber que a distribuição da renda nacional no Brasil é assaz desigual; ou seja: temos uns poucos com enorme poder aquisitivo de um lado e, de outro, muitos, diga-se, a ampla maioria da população, com rendimentos extremamente reduzidos. Também atesta a situação em exame o fato de o empresariado se apropriar ano a ano, na média, de aproximadamente 40% da anotada renda nacional, enquanto os trabalhadores mal alcançam 25% desse mesmo total (os restantes 35% são rendas de governo). Merece destaque ainda o fato de o país estar atualmente posicionado entre os oito mais desiguais em termos de distribuição da renda no mundo. Tampouco surpreende que apenas 1% da população possua riqueza (patrimônio) igualmente da ordem de 40%. Essa situação se mostra deveras mais grave na medida em que existe dentro desse mesmo 1% um estrato diminuto de pessoas sobremodo ‘privilegiadas’ – as que fazem parte do seleto e pequeno grupo de bilionários, etc.

Evidentemente nada disso cai do céu; e nem muda com rezas e orações, dado que as iniquidades em tela estão assentadas em determinações seculares – as que forjaram a sociedade brasileira contemporânea. Afinal, são séculos de autoritarismo, de patrimonialismo, de escravismo, de limitada organização dos ‘de baixo’ etc. Nesses termos, trivial dizer que a brutal e perversa distribuição da renda e da riqueza vigente no país não é mais (sic) que a expressão acabada de uma longa construção social – por vezes minorada quando governos de centro-esquerda chegam ao poder, mas, em regra, antípoda aos interesses dos referidos ‘de baixo’.

Não obstante a centralidade do quadro de iniquidades antes apontado é imprescindível considerar, ademais, o processo de apreçamento dos bens e serviços ofertados no mercado. Isso porque enquanto alguns agentes econômicos podem nele marcar seus preços com relativa desenvoltura (oligopólios e congêneres), outros não têm como fazê-lo (leia-se, a imensa maioria da população). É exatamente nesses termos que o economista polonês M. Kalecki explica que o processo de determinação dos preços dos bens e serviços não pode ser dissociado da distribuição funcional da renda (entre capital e trabalho).(1)

Mais detidamente: quem pode ‘marcar’ seus preços para cima ganha mais e quem pode menos ganha menos. Logo, a discussão sobre a distribuição da renda e a da ulterior riqueza não deve perder de vista, insistindo, além das determinações históricas já alinhadas, o processo de determinação de preço dos agentes econômicos supramencionados. Uma adição analítica crucial, dados os propósitos do presente artigo: a concentração da renda e da riqueza conspira abertamente contra o crescimento econômico, a geração de emprego e a realização da vida coletiva em padrões mais civilizados (volto a esse tema logo adiante).(2)

Estrutura tributária

Tal estrutura é inequivocamente regressiva. Explicando: quem ganha mais paga menos tributos e quem ganha menos paga mais. Exemplos não faltam: os donos de terra recolhem aos cofres públicos em relação ao bolo tributário total arrecadado apenas 0,05% a.a. É dizer: proprietários rurais, no limite, não pagam tributos; os donos de veículos automotores pagam o conhecido IPVA, mas os que possuem iates, jatinhos e jet skis estão isentos; as alíquotas do imposto de renda (Receita Federal, 2020) revelam, dentre outras coisas, ‘assombros’ como o de cobrar o Imposto de Renda (IR) de pessoas que recebem entre:

  • R$1.903,99 e $2.826,65 (7, 5%)
  • R$2.826,66 e $3.751,05 (15%)
  • R$3.751,06 e $4.664,68 (22,5%)

É dizer: o fisco cobra imposto sobre rendimentos relativamente baixos – tanto mais quando considerados os rendimentos dos muito ‘ricos’ e bilionários.

Ilustra perfeitamente o que veio de ser asseverado o fato de o fisco tributar em 27,5% quem ganha acima de $ 4.664,69. Isto é: paga essa alíquota quem percebe o anotado ‘piso’ assim como quem aufere qualquer valor acima dele (inclusive quem ganha infinitamente mais que o valor assinalado); ainda: estudo relativamente recente do professor João Sicsu, apoiado em dados do SIAFI, mostra que uma pessoa que recebe 300 mil reais/mês, por exemplo, através de mecanismos legais, é tributada na média em apenas 7% a.a.; também atesta a injustiça em exame o fato de a tributação incidir sobre o consumo e a produção, e não sobre a riqueza (patrimônio).

Desse modo, é trivial, penaliza-se a produção e o consumo e, por conseguinte, regressivamente os distintos poderes aquisitivos. Por conseguinte, não surpreende que o chamado ICMS represente aproximadamente 51% do total tributário arrecadado no Brasil, ao passo que em vários países do centro capitalista mundial esse percentual é bem menor, dado o peso ‘a maior’ da tributação da referida riqueza (as chamadas grandes fortunas); anote-se ainda o gigantesco volume de perdão de dívidas e de renúncias fiscais concedidos pelo poder público para poderosas empresas privadas; etc.

Resultam do exposto três observações

A regressiva estrutura tributária vigente é a mais pura expressão da brutal iniquidade social vigente no Brasil;

Essa mesma estrutura, ao beneficiar escancaradamente a turma do ‘andar de cima’, reduz a arrecadação tributária e sacrifica as políticas públicas tão necessárias à população em termos de saúde, educação, saneamento básico etc. (portanto, não surpreende que os economistas ortodoxos e os analistas econômicos midiáticos ditos especializados digam, a sua maneira, que falta dinheiro…); e,

Dessas duas observações deriva uma terceira: a do constrangimento do mercado interno, por conta das limitações impostas ao poder público no que trata da realização de gastos capazes de arrastar a EB na senda do crescimento econômico (acerca desse temário vide os comentários constantes do item seguinte).

Crescimento econômico

Esses últimos apontamentos resultam mais inteligíveis quando se tem em conta que a dinamização sustentada (no tempo) de uma economia depende dos investimentos privados, mas também, primariamente, dos sinais emitidos pelos gastos públicos (leia-se: aumento das despesas de custeio e, principalmente, de capital). Isso porque não há na história do capitalismo mundial registro de experiência que tenha ocorrido às expensas apenas do setor privado e que não tenha tido apoio precedente do Estado. Nesses termos, o arranjo gasto público-privado constitui mecanismo de arrasto por excelência quer dos dispêndios de consumo das famílias quer das empresas em termos de máquinas, equipamentos e insumos diversos (siderúrgicos etc.).

Mas para que isso aconteça, dentre outras ações, é preciso desconcentrar a renda nacional. Para esse fim, a consideração do multiplicador keynesiano se mostra de extrema valia. Explicando: ele ensina que enquanto os ‘pobres’ tendem a gastar parcela expressiva de seus rendimentos, posto que suas propensões a consumir são próximas de um (isto é, tendem a consumir toda a renda auferida), os ‘ricos’, ao contrário, por terem baixas propensões de consumo, poupam crescentes parcelas de seus rendimentos tanto mais eles aumentem (ou seja, as suas propensões a consumir são decrescentes com a renda). Nesses termos, a distribuição mais equânime da renda consiste em condição sine qua non para a promoção do crescimento da economia e não somente em necessidade pautada pelo senso de justiça social.

Para que isso aconteça é preciso também desconcentrar a riqueza através da reforma sempre esquecida ou adiada: a tributária. Vale dizer: urge fazer pagar mais tributo quem ganha mais (e em certo grau e dado tempo começar a desonerar quem ganha menos), posto que com essa mexida (tributária) será possível aumentar o consumo pessoal e/ou familiar, assim como os gastos de todos os entes federativos (municípios, estados e União).

Resumo da ópera: teríamos assim a possibilidade, finalmente, de promover um efetivo ciclo econômico-expansivo (mais) lastreado fiscalmente e sustentado no tempo – tudo isso, como ensinam mestres da área da chamada política econômica, observando-se com todo o devido cuidado da questão cambial e da capacidade produtiva instalada no país.

Rumo ao desenvolvimento

Dado o que foi exposto até aqui resta uma pergunta: qual a vantagem para o país, com 210 milhões de habitantes, possuir aproximadamente 2,1 milhões de pessoas muito ‘ricas’ e, dentre esses, de 60 bilionários? A verdade é que quem ganha muito ou mesmo muitíssimo não pode mais ser pelo menos tão preservado como tem sido até o momento. Afinal, nada justifica manter o atual status quo de sacrifício das condições de vida da maioria da população, dos entes federativos subnacionais (dadas as suas atribuições/responsabilidades legais) e do próprio crescimento da economia brasileira em nome dos interesses econômicos de tão poucos.

Por fim, sublinhe-se que o crescimento sustentado (como se assinalou) da renda nacional, desde que apoiado em processo socialmente mais equânime de distribuição da renda e da riqueza, suscita algo ainda mais importante: o desenvolvimento propriamente dito (sem a adjetivação econômica). Ou seja: a engenharia socioeconômica antes delineada/proposta mostra, embora não de per se, é trivial, ser possível avançar na melhoria das condições de vida do conjunto da população e dos níveis civilizatórios nacionais desde que enfrentadas para valer as flagrantes iniquidades sociais brasileiras expressas na distribuição da renda e na regressiva estrutura tributária vigentes.

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(1) Ver Luta de classe e distribuição da renda nacional in: Crescimento e Ciclo das Economias Capitalistas.

(2) Deixei de examinar o tema da meritocracia, é dizer, o tema que justifica a desigualdade social, posto considerá-lo narrativa apartada dos fatos/realidade, parceiro dos interesses dos ‘de cima’ e de natureza apenas ideológica (logo, isento de qualquer validação científica).