Há diversas vozes gabaritadas preocupadas com nossa situação política e as ameaças das mais diversas formas e teores à democracia representada por Bolsonaro. Intelectuais de variadas matizes e origens se manifestando, nos ajudando a entender o momento tenebroso em que vivemos há alguns anos, agravado pela eleição de alguém que menospreza, sem firulas, a democracia.

Neste artigo vou destacar duas dessas vozes, Celso Rocha de Barros e Marcos Nobre. Destaco-os porque apresentam argumentos sólidos (explicaram o bolsonarismo com rara clareza), são produtivos, adaptam suas posições aos fatos novos da nossa conturbada política, e são lidos por larga parcela da população que gosta e se preocupa com a política. Numa linguagem atual, são muito “compartilhados”.

Os dois exercem o saudável papel de intelectuais que debatem política com a sociedade, não se colocando acima dela, mas oferecendo suas interpretações em veículos de mídia de grande circulação.

Mas aqui vou estabelecer um diálogo crítico, porque entendo que de certo modo têm um olhar indevidamente enviesado, deslocando ocorrências e fatos políticos importantes para fora dos cenários que constroem, quando não se encaixam nas respectivas narrativas.

Recentemente, Celso Rocha de Barros escreveu um artigo na Folha de São Paulo chamado “Apoio da esquerda ao grupo de Maia foi uma decisão acertada” (FSP de 20/12/2020). Tomo esse artigo como referência porque o que pretendo criticar está nele, ainda que também em outros textos do mesmo autor.

Também como referência, mas do professor Marcos Nobre, uso a entrevista dada por ele à BBC Brasil: “Abertura precoce de impeachment sem frente ampla vai piorar situação do Brasil, diz pesquisador” (junho de 2020). Do mesmo modo, minha crítica ao Marcos Nobre pode ser encontrada nesse e em outros escritos ou entrevistas.

E apesar de serem intelectuais com enfoques próprios, penso que ambos partilham algo em comum, ainda que de forma inconsciente e com diferentes acentos: colocam a missão de sustentar a democracia nas costas da esquerda política e ambos falam de “democratas” ou “forças democráticas”, como se essas palavras se aplicassem a todos os atores políticos que, fora da esquerda, não fazem parte do núcleo duro do bolsonarismo.

Quase como se coubesse à esquerda sair de seu lugar supostamente intransigente e magoado para ir ao encontro de uma miragem no fim do arco-íris, os “democratas”.

Inevitável citar um trecho de cada um, como representativos do que estou falando. Do Celso de Barros, destaco:
“(…) A aliança é a reação correta à escalada autoritária bolsonarista, ao contrário da manobra desastrada para permitir a reeleição de Maia e Alcolumbre, felizmente derrotada.
Nos dois casos, a preocupação era a mesma: a certeza generalizada de que Jair é golpista. A turma pode fingir que não, mas todo mundo viu Bolsonaro tentando o autogolpe em 2020. Mesmo assim, driblar a Constituição teria sido fazer o jogo de Bolsonaro.
Reunir os democratas, por outro lado, é injetar na democracia brasileira a marra de que ela anda precisando. (…)”

Do Marcos Nobre, cito o seguinte trecho:
BBC News Brasil – E já aparecem discordâncias. O ex-presidente Lula, por exemplo, já afirmou que o ex-presidente FHC não é democrata.
Nobre – Isso. Mas aí no caso do Lula, sabe qual é a minha interpretação sobre o que o Lula está dizendo? É muito simples, ele diz assim: eu tenho direito de sentar na janelinha. É isso que ele quis dizer. Ou seja, o Lula está dando de “diva”. Eu sou o Lula, então se vocês querem alguma coisa vocês vão ter que vir sentar comigo e negociar comigo.
É assim que eu interpreto isso. É sensato uma pessoa fazer isso em um momento de risco para o país? Não, mas o Lula está querendo dizer olha, o PT, se for para entrar em uma coisa dessas, vai querer entrar como um jogador que tem o tamanho que tem. (…)”.

Marcos Nobre, em seus diversos escritos, fala de um “centro democrático”, uma “direita democrática” e eu me pergunto onde eles estavam entre 2013 e 2019…

Eliane Brum, jornalista e escritora, escreveu, em novembro de 2020 (com alguns anos de atraso, mas escreveu), um artigo em sua coluna no El Pais que foi muito compartilhado: “Precisamos falar sobre o PSDB”. Ainda que no artigo a jornalista quase peça desculpas por tocar no tema, abrindo, inclusive, muitas aspas para criticar o PT, o fato é que ela levantou um ponto esquecido: o PSDB foi fundamental para que Bolsonaro deixasse de ser extremo exótico e se tornasse presidente da República.

E não só o PSDB, diga-se, mas quase todas as forças políticas fora da esquerda que avalizaram a Lava-Jato, o golpismo de Aécio e Eduardo Cunha e, por fim, o impeachment de Dilma. Bolsonaro foi algo indesejado, mas lá estavam esses mesmos atores apoiando a candidatura do nosso antidemocrata presidente no segundo turno, em 2018.

Então, quando Celso Rocha de Barros opina, a respeito da ampla aliança para eleger um candidato supostamente antibolsonaro como presidente da Câmara, que “reunir os democratas é injetar na democracia brasileira a marra de que ela anda precisando”, dá um certo arrepio.

Celso Rocha de Barros e Marcos Nobre cobram e são rigorosos com a postura da esquerda, em especial o PT, mas ao falar das outras forças políticas falam em “democratas” sem explicar de quem estão falando, como se fossem entidades reais, mas que não precisam ser materializadas, como se fossem autoexplicativas. Marcos Nobre chegou a adjetivar Lula como “diva”, como vimos, por supostamente dificultar uma ampla aliança democrática de salvação nacional.

Fique claro, não espero essa bobagem de “autocrítica” das forças políticas que patrocinaram os ataques que a democracia sofreu nos últimos anos. Fique ainda mais claro que não cobro dos intelectuais aqui debatidos que tomem posição em defesa da esquerda política.

Apenas identifico nas análises dos dois intelectuais olhos críticos para as ações da esquerda, como se delas dependesse a democracia, e condescendentes com os demais “democratas”. Importante lembrar que na Lava-Jato, nas ações políticas de Aécio e Eduardo Cunha, no impeachment de Dilma, no governo Temer, Bolsonaro foi um coadjuvante. Um filho feio que hoje é rejeitado.

Claro que há diferenças entre Bolsonaro e, por exemplo, Rodrigo Maia, mas o mesmo Rodrigo Maia, todo o DEM, o PSDB, o MDB e demais forças políticas fora da esquerda, incluindo as não eleitas, como Judiciário e mídia, foram os responsáveis pelos ataques à democracia e, não menos importante, apoiaram Bolsonaro, pelo menos no segundo turno.

Preciso, então, falar o que deveria ser óbvio para todo observador minimamente atento da cena política nacional.

As forças econômicas obviamente não apoiam a esquerda, que também é minoritária nos Parlamentos, nos governos estaduais, municipais, nas mídias nacionais e regionais, nas forças armadas, no Judiciário, no Ministério Público. A esquerda só é forte nos movimentos sociais, mas esses, apesar de crescerem a olhos vistos, ainda não rivalizam com o poder real, nem perto.

A única coisa que a esquerda brasileira tem, como “fator real de poder”, desde 1989, é o voto e ainda assim, prioritariamente, nas eleições majoritárias para presidente da República.

Essa é a força da esquerda: o voto. A esquerda não tem um jornal, uma TV, um banco, nem mesmo um cabo e um soldado para fechar o STF, mas desde 1989 chega pelo menos em segundo lugar na eleição presidencial.

Como retira sua força primordialmente do voto, a esquerda brasileira é absolutamente dependente da democracia para continuar a existir, mas sozinha não tem força para sustentá-la, como vimos em 2016.

Se golpe houver, agora, não será por culpa da esquerda, mas das mesmas forças que sustentaram Bolsonaro em 2018 e que derrubaram Dilma em 2016. Bolsonaro nada poderá fazer sem elas, como não pôde, mesmo tentando, em 2020.

Então, minha crítica a Marcos Nobre e a Celso Rocha de Barros vem do fato deles aceitarem acriticamente todos que estão fora da influência imediata do campo bolsonarista como “democratas” e ainda cobrarem da esquerda um engajamento numa frente em que sequer há garantia de que a concorrência em 2022 será limpa, sem puxadas de tapete.

Discursam como se Bolsonaro pudesse fazer algo sozinho. Ele tem força, claro, mas solitário, pouco pode, como as movimentações políticas deste ano deixaram claro, inclusive com manobras pouco republicanas para barrar as investidas autoritárias, mas aceitas para evitar o “mal maior”.

Não foram Bolsonaro e seus aliados diretos que prenderam Lula e o tiraram da disputa em 2018, mas os mesmos atores que hoje são aceitos como “democratas” pelos intelectuais aqui debatidos.

Naturalmente, não falo de Sergio Moro, Dallagnol e do TRF4, meros peões, mas de forças políticas capazes de manobrar as instituições, o que Bolsonaro jamais chegou perto de conseguir. Que surpresas não guardam para Haddad ou para Flavio Dino ou para qualquer um da esquerda que coloque a cabeça para fora d’água?

Então, me parece que Marcos Nobre e Celso Rocha de Barros, sinceros democratas, intelectualmente aceitaram e absorveram uma chantagem, na qual a esquerda deve abrir mão de protagonismo, caso contrário os tais democratas deixarão de ser democratas.