Decorridas mais de três décadas da Constituinte de 1988, as mazelas do nosso sistema tributário se acentuaram. Elas são bem conhecidas. Primeiro: temos uma receita pública assentada basicamente em impostos indiretos e injustos porque são regressivos: quem tem mais paga menos e quem tem menos paga mais. Mesmo os impostos diretos (IPTU, Imposto de Renda e ITBI) apresentam graves distorções.
O imposto de renda incide basicamente sobre salários e suas alíquotas têm baixa progressividade, taxando de forma muito suave os salários maiores. FHC, em 1995, isentou os dividendos distribuídos pelas empresas aos acionistas do pagamento de IR, um absurdo. Os auditores fiscais federais, através da sua Associação, a Unafisco, revelam que o fim da isenção dos dividendos traria um aumento de R$ 59,9 bilhões na arrecadação. Tramita no Congresso o PL 2015/2019 que propõe o fim da isenção, duvido que seja aprovado e sancionado.
O IPTU nos imóveis locados é pago pelo inquilino e o ITBI “causa mortis”, que incide sobre heranças, tem alíquotas baixas e com baixa progressividade. Enquanto na Inglaterra ou na Suécia existem alíquotas que podem atingir ou até superar os 40% incidentes em imóveis herdados de elevado valor, no Brasil as alíquotas são modestas. A alíquota máxima é de 8% no RJ e RS, por exemplo, e de apenas 4% em muitos estados, SP, PR, dentre outros. Principal imposto do país, o ICMS carece de seletividade – suas alíquotas deveriam ser baixas em produtos essenciais e elevadas nos supérfluos, o que não ocorre. Não há uniformidade nas alíquotas estaduais, campeia a guerra fiscal.
Há, também, a velha e polêmica questão da divisão do “bolo tributário” entre as esferas de governo e das transferências federais para estados e municípios, tema de fundamental importância para que se avance na luta de redução das desigualdades. A carga tributária brasileira representa mais de 33,1% do PIB (2019), algo em torno dos R$ 2,2 trilhões arrecadados e gastos anualmente no país.
Definir quem paga e quanto e para onde vão os recursos (municípios, Estados e União) e sua alocação nas diversas funções de governo (educação, saúde, segurança, assistência social, dentre outras) é uma questão vital. Há quase consenso de que a União – que fica com a “parte do leão” porque dispõe do instrumento da Medida Provisória e cria contribuições que aumentam sua receita -, deveria ter seu “quinhão” reduzido, aumentando, em consequência, a participação dos Estados e das prefeituras. Em princípio seria esse um objetivo a atingir, mas não podemos deixar de considerar que a maioria dos Estados e dos municípios administra muito precariamente a cobrança de suas receitas próprias, gasta mal e sem critérios, elabora um número insuficiente de projetos e obras e, quando as realiza, gerencia sua execução com baixa eficiência.
No que diz respeito aos municípios, os prefeitos e suas associações representativas – Confederação Nacional dos Municípios (CNM), Associação Brasileira dos Municípios (ABM), Federação dos Municípios do Rio Grande do Sul (FAMURS) – vivem reclamando do aumento de suas atribuições que alegam serem incompatíveis com a disponibilidade de recursos. Uma breve e superficial olhada nas estatísticas das receitas por habitante recebidas de retorno do ICMS torna evidente inaceitáveis disparidades.
No Rio Grande do Sul, por exemplo, o município de Alvorada, o mais pobre do Estado, recebeu no ano passado apenas R$ 105 por habitante. Triunfo, porque lá se localiza o polo petroquímico, recebeu no mesmo ano quase R$ 4 mil/habitante, ou seja, 38 vezes mais. Já a capital do Estado, Porto Alegre recebeu apenas R$ 370 por habitante de retorno de ICMS, uma das suas principais fontes de receita. Não há nenhuma dúvida sobre o tamanho das necessidades a serem atendidas pela prefeitura da capital, especialmente em investimentos viários, sinalização de trânsito, educação, manutenção de hospitais e postos de saúde dentre muitos outros, comparativamente à prefeitura de Triunfo.
Um município paulista – Paulínia – recebeu em ano passado de retorno de ICMS mais de R$ 7 mil de retorno do ICMS por habitante, quase 70 vezes o valor de Alvorada! Não há qualquer dúvida de que o atual critério de repartição dos recursos, assentado basicamente no valor agregado gerado pelo município tem que ser revisto.
Já a receita do FPE é distribuída segundo um critério equitativo: estados e regiões mais pobres recebem mais recursos. As regiões Nordeste, Norte e Centro-Oeste ficam com 85% do “bolo” e as mais ricas, Sudeste e Sul com apenas 15%. O estado do Pará, um dos mais pobres do país é o mais aquinhoado, recebe 32 vezes mais do que São Paulo, o mais rico.
Tornar o sistema tributário brasileiro progressivo, com participação crescente dos impostos diretos na receita total; ajustar a distribuição dos recursos entre os entes federativos; acabar com a guerra fiscal entre estados e municípios; além de adotar alíquotas seletivas nos impostos indiretos incidentes sobre o consumo são tarefas importantes na luta contra a desigualdade. Mas os prefeitos e suas entidades representativas devem ter a consciência de que sua luta pelo aumento de receita só terá legitimidade à medida que tiverem coragem de atualizar anualmente o valor venal dos imóveis, adotar alíquotas progressivas, isentando do imposto predial os imóveis de baixo valor e adotando alíquotas progressivas incidentes sobre os de maior valor. É prioritária a cobrança do imposto territorial progressivo das glebas urbanas especulativas. É fundamental, também, a alteração – que cabe à União -, dos critérios de rateio de distribuição dos 25% do ICMS entre os municípios que hoje beneficiam escandalosamente os municípios mais ricos.
Sobre o tema leia “A luta feminista por uma tributação menos desigual”, por Luciana Pires.