A comida tinha um aspecto bom. Observou a fumaça que exalava do prato por muito tempo. Tempo demais. Talvez, pela primeira vez estava ali, pleno, diante da comida.
Desde que adoeceu, Paulo tem feito e pensado muitas coisas pela primeira vez. Coisas demais. Íntimas de uma intimidade sem segredos, mas cheia de mistérios. Desconhecida, mas familiar porque sempre esteve ali, em algum lugar dentro de si.
Não saberia explicar o porquê. Seriam para ele besteiras até bem pouco tempo. Perda de tempo. Como apenas olhar a fumaça subir retardando o prazer de comer.
Talvez seja isso. O prazer. Sem conseguir sentir cheiro ou o gosto da comida, sobra só a aparência. Põe na boca para encher o bucho. Mas antes precisa pô-la na mente para encher o espírito do prazer banal de uma comida gostosa.
Não era retardo do prazer, mas sua antecipação às engolidas. Também é um prazer diferente. Pouco explorado. Estava lá o tempo todo, mas fruído desapercebidamente.
Lição da pandemia. Sem olfato e paladar, aprendeu a ver as coisas de uma forma diferente. Mais contemplativa e verdadeira. Também aprendeu a pensar tudo de outro jeito.
Havia tanta gente para seduzir; tanto dinheiro para ganhar, acumular e gastar; tanta vaidade para satisfazer que não havia tempo para pensar na brevidade da vida. Agora, pensa. Apesar de, talvez, não ter mais tempo para viver.
No silêncio das noites insones e mal respiradas, pensava nas coisas desimportantes que tanto se esforçou por fazer como se fossem vitais. Nas horas de sedução que lhe trouxe corpos, mas não amores. Nas coisas inúteis que comprava porque esperava encontrar nelas a felicidade perdida em algum lugar dentro de si mesmo. Na vaidade, que alimentou na esperança de que ela um dia alimentasse sua autoestima. Tudo isso tornou-se sem sentido a partir do instante em que sua vida ganhou algum sentido.
Paulo aprendeu vendo e sentindo a morte de perto. Entristece ao perceber que outros não aprendem.
Veem a morte contabilizada em números e gráficos. Mas desenhos e algarismos não os sensibilizam. Palavras tentam, inutilmente, traduzir o horror de tantas mortes, mas parece lhes faltar a imaginação que faz dos números, desenhos e palavras, imagens nos espíritos.
A morte não os assusta. Antes, a desejam. Como o vampiro ao sangue ou o urubu à carniça. Alimentam-se da morte de tudo e de todos porque se sentem menores que tudo e todos. Fraco, quando alguém se vai, pensa que é forte por ter só uma gripezinha. Tolo, pensa ser esperto quando contraria a razão, como se possuísse inteligência capaz de ver o que mais ninguém vê. Iludido de que ilusão é coisa dos outros.
Gente assim é como o vírus. Muda para proteger suas tolas ilusões e ambições. Sufoca com sua burrice e indiferença. Mata com sua irresponsabilidade e sadismo.
Respirou o mais fundo que pôde. Sentiu a fraqueza do corpo e a tristeza do espírito a lhe imporem descanso. Deitou pensando num amanhã sem vírus e sem gente virulenta.
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