Voltando cerca de 10 meses no tempo, em maio de 2020 nós tínhamos dados que mostravam que até 0,5 % da população poderia falecer se nada fosse feito em relação à Covid. Esse dado foi tirado dos estudos realizados com a população de Nova York. Por lá, cerca de 5% dos testados positivo estavam morrendo, mas, como havia uma subnotificação enorme, estimada em até 10 vezes o número de testados (assintomáticos ou pessoas com sintomas leves, geralmente), o percentual real de mortes ficaria nos referidos 0,5%.

Isso não foi muito diferente no resto do mundo, variando um pouco conforme o suporte do sistema de saúde local e a competência de governantes para liderar a população no caminho certo. Onde lockdowns foram aplicados de maneira cirúrgica, monitorados por cientistas e não se cedeu à tentação de reabrir o comércio tão cedo, os números arrefeceram e muito pouca gente morreu. Esse é o caso da Nova Zelândia, onde somente 26 pessoas faleceram.

O Brasil, no final de maio de 2020, era uma grande Nova York em termos estatísticos. Naquele momento, tínhamos cerca de 40 mil mortos entre um milhão de testados positivo, ou seja, 4%. Nós então alertávamos para o potencial dos números se multiplicarem por 20 vezes. A base de cálculo era simples. Um milhão de contaminados multiplicados por 10 (copiando a subnotificação de Nova York e países europeus), resultariam em um número real de 10 milhões de infectados, ou seja, um vigésimo de nossa população, aproximadamente. Foi possível, a partir desse cálculo, estimar que 0,4% do total real de contaminados havia morrido no Brasil.

Hoje, esses números já foram multiplicados por 10 vezes, mas com um importante dado novo. Estudos conduzidos pelos abnegados cientistas da Universidade Federal de Pelotas estimaram que ao invés de 10 vezes mais, como mostravam alguns estudos anteriores, no Brasil, a subnotificação era da ordem de seis vezes. Então, como temos agora, oficialmente, cerca de 12 milhões de positivados, se multiplicarmos esse número por seis vezes, teremos um total de 72 milhões, cerca de um terço da população brasileira. Nossas atuais 290 mil vidas perdidas representam, por sua vez, 0,4% dos estimados 72 milhões de contaminados, mantendo o padrão esperado. Os números continuam então batendo com as premissas percentuais das previsões de cientistas.

A questão é: aonde chegaremos? Já dá para responder a essa pergunta? Infelizmente, a resposta não nos é favorável. Hoje temos uma média de 70 mil novos contaminados por dia e subindo. Se multiplicarmos esse número por seis (dada a estimada subnotificação), teremos cerca de 420 mil contaminados por dia. Imaginando um cenário tenebroso, mas possível, no qual essa média permaneça estável nos próximos três meses (90 dias), aos 72 milhões já infectados somaremos 37,8 milhões (total geral de 109,2 milhões). Isso significa que, caso as medidas de isolamento social e os lockdowns não sejam muito eficientes, potencialmente, em três meses a metade da população brasileira terá já sido contaminada pelo vírus. Teremos também perdido mais 0,4% dessas 37,8 milhões, ou seja, 150 mil pessoas, somando um total de 440 mil mortes até o final de junho.

Cabe ressaltar, por outro lado, que o percentual dos infectados que falecem deve diminuir rapidamente. Isso porque, estando os idosos todos vacinados, o cálculo passará a ser feito em cima de parcelas menos sensíveis da população. O colapso do sistema de saúde pode, por sua vez, elevar o número de mortos a patamares acima do esperado para as faixas etárias que estão sendo contaminadas agora.

Além disso, depois de contaminada a metade da população brasileira e considerando algum avanço em nossa vagarosa vacinação, uma imunidade de rebanho ainda que incipiente poderia começar a interferir também no número diário de novos infectados. Isso deve acontecer mesmo considerando a imunidade provocada pela contaminação natural menos eficiente do que a da vacinação. Juntamente com a gradual diminuição da pressão sobre o sistema de saúde, esse processo deve nos fazer ter uma redução ainda maior no número de mortes depois de passarmos do referido patamar de 440 mil.

Os números acima são meras predições. Os próximos três meses podem ser bem piores ou bem melhores, dependendo, infelizmente, da sensatez e eficiência das autoridades e da população. Não sabemos se os níveis de morte e infecção respeitarão uma curva normal simples com um pico típico ou se se comportarão como na primeira onda em que houve estabilização em um platô alto de mortes achatando a curva normal. Também não podemos hoje prever se finalmente as autoridades imporão medidas de restrição funcionais e que impeçam, por exemplo, aglomeração em transporte público daqueles que não podem deixar de trabalhar.

No que diz respeito às variantes, sua maior capacidade de contaminação e consequente dispersão parece estar cada vez mais corroborada. Quanto à sua letalidade, que vem sendo tomada como maior (no caso da P.1), teremos ainda que aguardar algum tempo para entender como ela se comporta. Nesse sentido, olhar os números atuais da pandemia no Brasil é um dos caminhos.

Para finalizar, então, aqui reportamos, por mera curiosidade empírica, o percentual de mortes ocorridas nesta semana entre os contaminados, para verificar se há evidências claras da esperada redução da letalidade média como decorrência da alteração do perfil etário dos internados. Hoje, dia 23 de março, dia em que escrevo esse artigo e em que houve maior número de mortes em um único dia (3.158) podemos fazer esse cálculo com base na média de novos casos confirmados 12 dias atrás (as mortes por Covid acontecem em média 12 dias após o surgimento dos sintomas), quando comparada à média de óbitos hoje (calculada para os últimos sete dias, assim como a anterior). O número médio de testados positivo confirmados 12 dias atrás foi de 66.289. Se multiplicado por seis, respeitando ainda os dados sobre subamostragem da UFPel, temos um total médio de 397.734 novos casos diários naquela ocasião. O número médio de mortes diárias que temos hoje (2.349) representa então 0,59% do número suposto de pessoas contaminadas.

Embora com base nessa simples comparação de médias pouco possa ser afirmado (muitas outras comparações e testes seriam necessários), podemos ver que os percentuais de mortes em relação aos totais não parecem estar reduzindo como o esperado, mesmo considerando que cada vez mais a amostragem é composta por pessoas mais novas. As causas disso podem ser ligadas à precariedade do cálculo apresentado aqui (amostragem pontual, possível mudança nos números da subnotificação etc.) ou, de fato, ao aumento da letalidade da pandemia no Brasil, seja em decorrência do colapso do sistema de saúde ou da já discutida maior agressividade das cepas novas.

Em qualquer dos casos, já está claro que as centenas de milhares de mortes que ocorrerão daqui para frente deverão, cada vez mais, ser atribuídas à incapacidade do governo em adquirir as vacinas e em colocá-las organizadamente à disposição da população. Com a expertise e o histórico do SUS, poderíamos estar vacinando a uma velocidade cinco vezes maior e não estaríamos tão à mercê dessa verdadeira roleta imposta pelo vírus.

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