O colapso da modernização capitalista no Brasil se impôs pela continuidade da aplicação do receituário neoliberal, inicialmente experimentado durante a Era dos Fernandos (Collor, 1990-1992 e Cardoso, 1995-2002). Sob o codinome de uma ponte para o futuro, o neoliberalismo voltou a ser implementado no governo Temer e continuado por Bolsonaro, o que acelerou, sem piedade, o desmonte da sociedade industrial até então integrada e difundida pela generalização do trabalho assalariado formal e pela cidadania assentada em direitos sociais e trabalhistas.

Com isso, as bases do antigo agrarismo propulsor da sociedade do apartheid passaram a ser retomadas com a proliferação das subocupações em disputas crescentes pelas migalhas a cair da mesa de ricos e poderosos, no formato de viração humana que permita algum ganho monetário para sobreviver. A miséria produzida pelo neoliberalismo tem sido recorrentemente confirmada por indicadores do desempenho econômico nacional, cujo nível de atividade produtiva neste início de 2021 equivale a apenas 93% do que havia sido alcançado em 2014.

Diante do decrescimento econômico, o Estado passou a ser novamente acionado para atuar como pronto-socorro de interesses dos ricos e poderosos de sempre que seguem praticamente isentados do pagamento de tributos, embora terminem sendo os que mais usufruem do fundo público. Mais uma vez, a contradição neoliberal se processa entre o discurso recorrentemente contrário ao Estado e o abuso do uso do fundo público em defesa dos privilégios do andar de cima da pirâmide social brasileira.

Concomitante com a fraseologia anti-Estado justificando a prática do desembarque dos pobres e cada vez mais a própria classe média assalariada e proprietária do orçamento governamental, constata-se a sua artificialidade frente ao comportamento revelado pelo processo ampliado de apropriação por ricos e poderosos dos recursos públicos. A retórica da mídia comercial e dos porta-vozes do dinheiro que se fundamenta no maltrato do Estado (gigantesco, improdutivo, corrupto, ineficiente, etc.) por centralizar a razão de todos os problemas do país (da unha encravada à incompetência privada), tem servido apenas como figuração ideológica, acobertando o seu anacronismo mediante o confrontado com a realidade nacional.

É por conta disso que se torna interessante recuperar a principal referência adotada pelos defensores do neoliberalismo assentada na ideia de “gigantismo estatal” em relação à economia nacional. Para tanto, utiliza-se como demonstração empírica o total oficial anual de recursos públicos administrado nas três esferas (União, Estados e Municípios) governamentais: financiamento por arrecadação tributária, emissão monetária e endividamento público em contraste com o Produto Interno Bruto (PIB) ao longo do tempo.

Apenas para efeito demonstrativo da contradição em processo, destaca-se que justamente nos governos neoliberais, o “gigantismo do Estado” em relação à economia nacional cresce, ao contrário do verificado nos governos destoantes do neoliberalismo. Na era dos Fernandos e após o golpe de 2016 (Temer e Bolsonaro), por exemplo, o tamanho do Estado em relação ao PIB aumentou consideravelmente.

Em 2002, o último ano do segundo mandato de FHC (1995-2002), o Estado brasileiro geriu o montante de recursos públicos que equivaleram a 36,7% do PIB. Doze anos antes, em 1990, no primeiro ano do governo Collor (1990-1992), o Estado tinha administrado o total de recursos públicos equivalente a 26% do PIB.

Em síntese, a despeito da ferrenha crítica ao setor público e valorização do setor privado, a primeira onda neoliberal praticada na era dos Fernandos (1990-2002) foi responsável pela elevação do peso do Estado na economia em 41,1%, o que equivaleu à expansão média de 2,9% ao ano.

Na segunda onda neoliberal, atualmente em curso, o tamanho do Estado em relação ao PIB aumentou significativamente mais. No ano de 2020, por exemplo, o segundo ano do governo Bolsonaro, o Estado administrou o montante de recursos públicos correspondente a 47,1% do PIB, ao passo que em 2014 era de 38,2% do Produto Interno Bruto brasileiro.

Com isso, o peso do Estado na economia cresceu 23,3% na segunda metade da década passada, equivalendo ao aumento médio de 3,6% ao ano. Ou seja, a segunda onda neoliberal registra aumento de 24% superior ao verificado na primeira onda.

Durante o governo Sarney (1985-1990), a quantidade de recursos públicos gerida pelo Estado em relação ao PIB praticamente não subiu. Em 1990, por exemplo, a presença do Estado representou 26% do PIB, enquanto em 1985 havia sido de 25,9%.

Nos governos petistas (Lula e Dilma), a participação do Estado na economia se manteve praticamente estável, com leve aumento. No ano de 2014, por exemplo, o último ano do primeiro governo Dilma, a quantidade de recursos gerida pelo Estado correspondeu a 38,2% do PIB, ao passo que em 2002 havia sido de 36,7%, conferindo acréscimo acumulado de 4,1%, ou seja, apenas a elevação média de 0,3% ao ano.

***

Clique aqui para ler outros artigos de Márcio Pochmann.