Gilberto não sabe até quando terá emprego. Salário reduzido. Gastos aumentados. Principalmente com bebidas. Sai de casa com culpa. Fica em casa com medo. Mas está tudo bem.

Vê notícias de gente que vai para festas. Que anda sem máscara e cospe na cara dos outros. Gente que não se aguenta de máscara brigando com gente de máscara. Gente que diz para ficar em casa brigando com gente que pergunta quem vai dar dinheiro para ele enquanto fica em casa. Mas está tudo bem.

É gripezinha! Morrem quinhentos. Todos nós vamos morrer um dia! Morrem mil. E daí, não sou coveiro! Morrem três mil. E daí? Morrem cinco mil. Vou fazer um churrasco! Morrem nove mil. Tem medo de quê? Enfrenta! Morrem cinquenta mil. País de maricas! Morrem cem mil. Vacina? Na casa da sua mãe! Morrem duzentos mil, trezentos mil… Gilberto parou de contar mortos. Mas tá tudo bem.

Tribunal que deveria dar a palavra final dos julgamentos, dá novamente a palavra final do julgamento que já julgou. Mas a palavra final não é a palavra final, porque na semana que vem continua a dar a palavra final sobre outra coisa que já deu a palavra final. E cabe recurso. Mas tá tudo bem.

O casamento, celebrado com juras de amor eterno, encontrou o fim da eternidade em um mês de confinamento. Sozinho, procura na internet com quem conversar. Acha gente entristecida. Cheias de si mesmas. Vazias de sentimento. Solidão conectada. Mas tá tudo bem.

Médicos medicam com o que outros médicos dizem que mata. Conselho diz que o problema não é com eles. Cada médico sabe de si. Falta leito. Falta vacina. Falta oxigênio. Falta anestésico. Médico tem. Aguerridos. Heroicos. Outros, sem ciência ou racionalidade, guardam da medicina só o jaleco e a letra feia. Mas tá tudo bem.

Morreu a avó, a amiga de infância, o ex-cunhado, o cara esquisito e bafento do escritório, o amigo do amigo, o cara famoso, a atriz bacana. O primo está na UTI, o chefe respira com dificuldade, A moça da padaria pegou mas já está bem. Tá tudo bem.

Passa horas e mais horas na internet vendo dancinhas, dublagens, memes e lacrações. Sensacionalismos e pornografia. Muita pornografia. Coisas que minutos depois esquece, atropeladas por mais da mesma excitação visual. Sente que é perda de tempo. Faz de novo. Mas tá tudo bem.

Carne aumenta, arroz aumenta, gasolina aumenta, diesel aumenta, desemprego aumenta, dívidas aumentam. Governo não tem orçamento, dinheiro ou plano. Diz que vai fazer. Não faz. Vai fazer de novo. Muda tudo. Fica na mesma. Empresários alimentados de conversa, promessas e vantagens pessoais aplaudem de pé. Outros perdem as empresas junto com a esperança. Mas tá tudo muito bem.

A casa está suja. Roupa acumulada no cesto. Ferro de passar quebrou. A geladeira vaza água. Louça sempre suja amontoada na pia. Mas tá tudo bem.

Fora de casa, a zona de uma gente perdida. Sem enxergar o futuro, pede pelo passado. E odeia quem quer do futuro um passado diferente. Enquanto isso, no cada um por si, uns enriquecem sem culpa, outros empobrecem sem esperança. E morre-se. Morre-se muito. Mas tá tudo bem. Tá tudo muito bem…

***

Clique aqui para ler outras crônicas do autor.