O cansaço das noites mal dormidas torna o despertar uma brutalidade. É preciso força de vontade para superar a vontade de permanecer encasulada nas cobertas quentes. Amália é forte e disciplinada. Mesmo assim, é difícil para ela levantar-se hoje. Como foi difícil ontem. E antes de ontem. E antes.
Dias diferentes trouxeram um sono diferente. Cheios demais, esvaziaram o descanso da noite. Acorda cansada. Passa o dia cansada. Cheia de tarefas a cumprir e cheia de não saber como cumpri-las. A frustração dos pequenos fracassos destranquiliza a mente, que noite a dentro remói falhas e faltas. Como se o mal feito na vigília pudesse ser bem feito no sono.
Dias e noites não eram assim. Havia o trabalho em casa com coisas de casa e o trabalho no trabalho com coisas do trabalho. Casa era lugar de comer, tomar banho, relaxar cada um na sua, deveres de casa e descanso.
O trabalho era lugar de reuniões, sorrisos marmorizados para gente que não queria estar ali, planilhas, textos ensossos, competição imoral por promoção e devaneios eróticos que a mente inventa para suportar as convivências com corpos que agem como se não tivessem almas por dentro.
Em casa, sente-se ridícula em maquiar-se para a reunião on-line. Deixa a boca vermelha como quem vai beijar. Cílios alongados dão aos olhos moldura que disfarça o tédio. Elegante da cintura para cima. De pijama e calcinha de algodão furada da cintura pra baixo. Verdadeira e banal da cintura para baixo. Dissimulada da cintura para cima.
Tudo é pela metade. Trabalho e descanso pela metade. Competição pela metade. Maternidade pela metade. Fantasias pela metade. Erotismo pela metade. Amália não se sente mais inteira.
Cada coisa tinha seu horário e lugar. Perdeu-se primeiro o lugar. Depois, a confusão. Tudo se embaralha no tempo que corre no espaço errado. Casa virou trabalho e escola. O escritório virou lembrança e fantasia.
Do sonho de outra noite mal dormida veio a ideia de reorganizar o espaço para domar novamente o tempo. Olhou-se no espelho arrumada da cintura para cima e nua da cintura para baixo. Seria assim dali para frente. A casa seria dividida em duas. Da cintura para cima, trabalho, concentração, competição, esforço e dissimulação. Da cintura para baixo, descanso, distração, entrega, relaxamento e autenticidade.
Nada mais de trabalhar na cama, só de pé. Nada mais de se excitar de pé, só deitada. Percebeu que lavar a louça, apesar de ser feito em casa, sempre foi trabalho. Que as abdominais só são trabalho quando se ergue o tronco. Que no sexo, estando por baixo é relaxamento e entrega e por cima é dominação e performance. Que para o filho, mais baixo que sua cintura, tudo é brincadeira. E que no trabalho, quem manda, fica no andar de cima e na cadeira alta. E não é à toa que dizemos que o salário do chefe é alto ao invés de grande.
Encontrou-se consigo mesma deitada. Em paz horizontal tão profunda que os medos, frustrações e expectativas tornaram-se apenas futilidades dos momentos verticais. Dormiu com a tranquilidade dos lugares baixos. Onde os dominantes do andar de cima não se atrevem a descer por medo de encontrarem a si mesmos.
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