À meia noite da quarta-feira, 19 de maio, ainda sob a surpreendente ressaca das urnas do final de semana anterior, a justiça eleitoral chilena encerrou as inscrições de pré-candidaturas para as eleições primárias que definirão parte dos candidatos à presidência na eleição de novembro. Nas horas finais do prazo, os chilenos ficaram atordoados com a reviravolta de alianças, desistências e postulações. Acordos históricos foram rompidos, pactos anunciados foram dissolvidos e lideranças improváveis se agigantaram. A trama assemelhada a último capítulo de novela, de deixar sem fôlego o mais atento dos analistas políticos do país, começou há muito tempo.
Os punhos erguidos e os passos resolutos que percorreram as ruas de Santiago desde 18 de outubro de 2019 venceram mais uma etapa do processo de refundação de um país. E a palavra não é exagero. Refundar é a tradução das frases pintadas à beira do Mapocho: “hasta que la dignidad sea costumbre”. Dignidade é a palavra escolhida também para nomear um pequeno ponto perdido no mapa da capital chilena. Turistas brasileiros já passaram pela Praça Itália, entroncamento obrigatório entre a parte alta, o centro e os bairros populares. Nesse meio acre se erguia a estátua de um genocida dos povos indígenas, o General Manuel Baquedano. Por um século, ele reinou ao lado de outros supostos heróis construídos para os livros de história dos dominadores. Até o levante de outubro. Cansado de tanto gastar recursos públicos para restaurar de madrugada o que os manifestantes usavam como alvo durante o dia, o governo de Sebastián Piñera resolveu retirar o prócer de circulação. Mas a praça seguiu como território de disputa. Uma disputa por uma praça e por um país.
A resposta dada nas urnas nos últimos dias 15 e 16 de maio coloca Baquedano e todos os seus adoradores no devido lugar desta nova história que está a ser escrita. A refundação de um país exigiu que os estudantes, frequentadores assíduos da revolta contra um modelo assassino, tomassem mais uma vez a iniciativa. Nunca foi por trinta pesos, mas por trinta anos. A eles se juntaram os trabalhadores e aposentados, suas mães, pais, abuelos e abuelas. Também vieram os mapuches e outros povos originários. E o golpe de misericórdia veio envolto em verdes lenços e vermelhos refrões, com vozes feministas que obrigaram o sistema a engolir um mundo de dedos apontados a dizer: o violador é você. A lógica patriarcal que sustenta o ultracapitalismo chileno começava a ruir.
Foram meses de resistência da Primeira Linha, os jovens e nem tão jovens que se dispuseram a trocar pedras por bombas, elastômeros e gás. Quatrocentos e sessenta e um ficaram cegos pela mão da principal corporação armada de repressão a manifestações. Bastou que aquele povo levantasse a cabeça uma vez para que as fardas entrassem em sua sinistra máquina do tempo e voltassem quatro décadas, aos mesmos porões onde podiam saciar seus asquerosos desejos. E a estação de metrô Baquedano, embaixo da Plaza Dignidad, virou casa de tortura. A Fiscalia – equivalente a nosso Ministério Público – recebeu 8.827 denúncias de estupros, espancamentos e violações em geral por agentes do Estado. Mas a rua é soberana e os próprios manifestantes, em meio à fumaça e à água com agentes químicos que queimam a pele – cuspidos pelas máquinas motorizadas de repressão, sonhadas pelo ditador Carlos Ibañez del Campo, precursor de Pinochet – clausurou o lugar e o transformou em memorial vivo, com arte e cor.
Os meses de resistência também foram de pandemia, que impede encontros, abraços e mãos dadas. Mas a rua é soberana, e aquele povo encontrou-se consigo mesmo. A solidariedade deu força à dignidade. As ollas comunes – ação popular autoconvocada para distribuição de alimentos – voltaram. Também ressurgiram os murais, os artistas populares, os grafites, as danças e a música de Quilapayun, Inti Illimani, Violeta Parra e Victor Jara, com milhares em coro a cantar o direito de viver em paz. Ressurgiram ali, no centro de Santiago, diante de uma elite escandalizada, porque essas manifestações de uma cultura solidária nunca deixaram de existir em bairros como La Pintana, La Legua, José Maria Caro, La Victoria, as chamadas poblaciones, que guardam a herança de conhecer o outro mundo possível da Unidad Popular, das consequências de sonhar esse mundo e dos abusos que se seguiram à aquela manhã cinza de 1973, que aplacou a primavera.
Dezessete anos de terror foram seguidos por 30 anos de abusos de uma democracia escrita em letra miúda, e sobrescrita. A Constituição de 1980, promulgada pelo ditador Augusto Pinochet, só chegou à plenitude sonhada por Friedman com as modificações que vieram depois da redemocratização. A cada vírgula pontuada pelos partidos governistas, o eco ensurdecedor era o da conivência dos parlamentares da Concertación. A traição ao povo estava no DNA daquelas legendas partidárias. Capitaneada pela Democracia Cristã – que apoiou o golpe contra o governo democraticamente eleito de Salvador Allende e depois fingiu horror aos horrores dos aprendizes da Caravana da Morte – a Concertación impediu que a campanha do plebiscito de 1989 cumprisse sua promessa. Para convencer os chilenos a vencer o medo e votar pelo NO, a campanha garantia: “a alegria já vem!” Não veio.
Rios, bosques, praias, territórios indígenas, aposentadorias, serviços de saúde, vagas em escola e universidades, passado, presente e futuro, tudo foi posto à venda. Não é à toa que os mercadores internacionais vociferam agora ameaças ao pequeno país austral pela composição da Convenção Constituinte. Três décadas depois de votar pelo NO e se decepcionar, os chilenos já tinham vencido o medo quando o Exército voltou às ruas pela primeira vez em democracia para conter o que não poderia ser contido. E venceram também a desconfiança em si mesmos e no sistema. Decidiram derrubá-lo por dentro. O resultado colocou os filhos de Baquedano no limbo.
Na eleição dos constituintes, saíram vitoriosas as mulheres, os independentes, os indígenas e as plataformas progressistas. Das 155 cadeiras da Convenção, 77 são de mulheres. E poderiam ser mais. Elas foram maioria entre os eleitos e a regra – inédita no mundo – da paridade acabou sendo usada para equiparar a quantidade de homens à de mulheres. A mais jovem constituinte é Valentina Miranda, 20 anos e comunista. Ela vai dividir os trabalhos com a principal representante da base de Piñera, a udeísta Marcela Cubillos, que chega à convenção com a maior votação – obtida nos bairros da elite de Santiago. Ambas terão que se esforçar para entender o mapudungun da Machi Francisca Linconao, líderança mapuche que em 2009 venceu uma madeireira na Suprema Corte. Em 2016 foi presa com base na Lei Antiterrorismo pela mesma justiça chilena. Foi pra cadeia, fez greve de fome, passou a prisão domiciliar, obteve apoio internacional, teve o caso revisado até ser inocentada pela justiça em 2018. Essa líder de um povo que resiste a séculos de tentativas de dominação também vai escrever a nova Constituição.
Dois terços da Convenção são de candidatos independentes. O maior grupo deles já anunciou que só discute qualquer matéria constitucional depois que os mais de três mil manifestantes presos neste ano e meio de protestos forem libertados, honrando a promessa de campanha de não deixar ninguém atrás. Pela primeira vez desde 1972, os partidos de direita não terão a famigerada parcela de um terço do parlamento, que lhes garantiu sempre o veto diante de qualquer tentativa de repartir o bolo. Com 38 cadeiras, longe das 52 necessárias, terão de negociar para tentar a difícil tarefa delegada pelos seus eleitores de garantir-lhes os privilégios atuais. Sabem que tem os dias contados.
E o relógio avança também sobre La Moneda. Em novembro há eleições presidenciais. O eco das ruas ensurdeceu os partidos de todo espectro, alvos de rejeição e desconfiança institucional das gentes de outubro. Pela primeira vez, a Democracia Cristã está isolada e quase (até a hora em que escrevo) sem candidatura. O Partido Socialista pela primeira vez rompeu com a DC, mas tentou levar a uma sonhada aliança com o Partido Comunista e o chamado Frente Amplio, que reúne dissidentes à esquerda da antiga Concertacion, partidos que a compuseram, carreando o apoio do centrista PPD, por exemplo. A tentativa fez naufragar a aliança e a esquerda vai às primárias rachada como sempre, mas forte como nunca. Quem lidera as pesquisas no espectro da esquerda é o prefeito reeleito de Recoleta, sociólogo, arquiteto, neto de palestinos e comunista, Daniel Jadue.
A principal pré-candidata do oficialismo desistiu de concorrer à Moneda. Três são os pré-candidatos pela direita, liderados pelo representante da União Democrática Independente, herdeira do pinochetismo, apesar do nome. O economista prodígio dos Chicago Boys – que implantaram o modelo econômico vigente, genro de um dos líderes do movimento de extrema-direita Pátria y Libertad, e membro da alta cúpula do Opus Dei chileno, Joaquin Lavin é ex-prefeito de Santiago e postulante à presidência por duas vezes anteriores. Mesmo no histórico de alternância de poder característico do Chile pós-ditadura, um cenário com a direita tão apequenada, beirando o pó seco do Atacama, seria impensável. São os ventos quentes de outubro que varrem aquele país frio e anunciam uma nova primavera.
As paredes do La Moneda e as do antigo Congresso Nacional – que abrigará as sessões plenárias da Convenção Constitucional – parecem ouvir passos familiares. O caminhar de um médico de formação, mas político de vocação. Alguém que decidiu seguir a via democrática para refundar um país, que conseguiu o apoio das massas e realizou o que este continente tanto anseia. A ousadia levada ao extremo da coerência, terminou num disparo. O estampido não foi capaz de colocar ponto final a um discurso que ecoa insistente nesse Movimento de Outubro das ruas de Santiago, de Arica a Punta Arenas. Fardados e insurrectos escutam sem parar aquelas palavras transmitidas pela Rádio Magallanes e a elas reagem, cada um a seu modo. Quatro décadas depois, parece que finalmente chegou o tempo de ver as grandes alamedas se abrirem para que mulheres e homens livres passem a construir uma sociedade melhor. Que elas se abram ali, aqui, acolá.
Saiba mais sobre o processo político chileno no vídeo (abaixo) do documentário dirigido pelo autor deste artigo, o jornalista Aldo Quiroga.