Ilustração: Mihai Cauli

O fim de mais um ciclo olímpico trouxe medalhas, torcidas apaixonadas, choros de alegria e frustração, novos ídolos, noites insones e muita discussão política em diversas frentes. E é fundamental para o amadurecimento da nossa recente e constantemente ameaçada democracia essa conscientização social de que “tudo é político” e que as manifestações mais prosaicas do nosso cotidiano são influenciadas por decisões políticas de toda ordem. Mesmo no esporte, onde os discursos de meritocracia e superação são muito fortes, é notável o reconhecimento da importância não só de políticas públicas específicas de incentivo ao esporte, mas daquelas transversais de inclusão social, equidade de gênero e racial, saúde e educação públicas, entre tantas outras. Mas, precisamos avançar para que essa discussão não ocorra apenas de quatro em quatro anos.

Para início de conversa, é preciso “desromantizar” o discurso de superação individual, principalmente em relação aos atletas que venceram a pobreza e a exclusão social na força do amor e do incentivo da família, treinando em condições desfavoráveis, inacreditáveis para atletas de nível olímpico e paralímpico, acumulando subempregos paralelos aos treinos para sobreviver. Claro que há aí um talento individual, uma garra, uma força de vontade impulsionadora de vitórias e conquistas que podem e devem ser celebrados e aplaudidos. Mas, é preciso tirar o véu desse discurso meritocrático que encobre a falta de políticas públicas capazes de potencializar esses talentos individuais, conferindo o suporte necessário para seu desenvolvimento com garantia de renda e condições adequadas de treinamento.

Dentre as iniciativas de políticas públicas nesse sentido, o Programa Bolsa Atleta, vigente desde 2005, tem por objetivo oferecer bolsas a atletas em seis categorias, com distintos valores e pré-requisitos para recebimento. De acordo com informações disponibilizadas pelo Ministério da Cidadania, atual gestor do Programa, em 2021 foram contemplados 7.197 atletas com 12 parcelas de benefícios, de acordo com cada categoria: Atleta de Base (R$ 370 – 316 contemplados); Estudantil (R$ 370 – 456 contemplados); Nacional (R$ 925 – 4.859 contemplados); Internacional (R$ 1.850 – 1.200 contemplados); Olímpico/Paralímpico (R$ 3.100 – 366 contemplados) e Pódio (R$ 5 mil a R$ 15 mil, a depender da posição nos rankings mundiais de cada modalidade). Da delegação brasileira em Tóquio, 231 atletas (75%) recebiam Bolsa Atleta (87 Bolsa-Pódio; 61 Bolsa-Olímpica; 59 Bolsa-Internacional e 24 Bolsa-Nacional) e 89 atletas eram das Forças Armadas.

Nesta última edição dos Jogos Olímpicos, o Brasil conquistou 21 medalhas (sete de ouro, seis de prata e oito de bronze), desempenho melhor que em 2016 quando tivemos a maior delegação e fomos sede dos Jogos, conquistando 19 medalhas no total. Reportagem do El País de 07/08/2021 revela, entretanto, que esse desempenho histórico em Tóquio aconteceu “apesar do Governo, e não por causa dele”, já que desde 2018 há um sucateamento do setor, com a extinção do Ministério do Esporte e sua transformação em secretaria subordinada ao Ministério da Cidadania, com redução de servidores e de orçamento. Por sua vez, os valores do Bolsa Atleta, que mais configuram ajuda de custo que remuneração, são os mesmos desde 2010 e o Governo não lançou o edital do programa em 2020, deixando muitos sem recebimento justamente no período mais crítico de preparação para os Jogos, o que foi agravado pela pandemia global.

Em paralelo, a grande maioria das promessas de aproveitamento da infraestrutura construída para os Jogos de 2016 no Rio se perdeu entre deteriorações e abandonos, fazendo com que alguns de nossos atletas se virassem por conta própria em terrenos baldios, açudes e outras formas improvisadas de treinamento, muito distantes das condições que possibilitariam explorar seus melhores desempenhos. Para piorar, não foram raros os relatos de desligamento ou redução de salários por parte dos clubes no ano de 2020. Outra recente reportagem do GE mostrou que mais de 30 representantes do país nas Olimpíadas de Tóquio precisavam conciliar a carreira no esporte com outros empregos (33 atletas), 131 estavam sem patrocínio e 41 fizeram vaquinha para conseguir viajar.

A transmissão dos Jogos expõe, então, na forma de heróis e guerreiros brasileiros, atletas largados quase à própria sorte em sua preparação olímpica. As mesmas emissoras de TV concedem pouco ou nenhum espaço a boa parte dos esportes olímpicos fora dos Jogos, limitando ainda mais a visibilidade dos atletas para o grande público e empresas e, por conseguinte, limitando patrocínios e pressão por melhores condições de treinamento e preparação. Basta dizer que a Marta, eleita seis vezes a melhor jogadora de futebol feminino do mundo e maior artilheira da história das Copas, competiu nesses Jogos sem qualquer patrocínio.

Por outro lado, a excepcional ginasta estadunidense Simone Biles, pentacampeã mundial e campeã olímpica em 2016, veio nos mostrar que mesmo quando garantidos todos os recursos e condições financeiras e de infraestrutura, é preciso cuidar da saúde física e mental dos atletas. Não é novidade que em regime de dedicação exclusiva a treinamentos exaustivos e de alto rendimento, os atletas convivem com dores crônicas, sofrem uma série de lesões e se submetem a um número de intervenções cirúrgicas surpreendente em idades muito jovens, fruto de levar constantemente o corpo ao seu limite físico. Menos explorados, entretanto, são os danos psicológicos advindos de tamanha dedicação. Atletas que muitas vezes saem de casa muito jovens para morar em outra cidade, que abandonam as brincadeiras de criança e as descobertas adolescentes descompromissadas para uma vida de muita responsabilidade e, não raro, com o peso de carregar os sonhos de uma vida melhor para toda sua família. Impossível aqui não lembrar dos meninos do Ninho do Urubu, mortos em um incêndio enquanto dormiam em instalações duvidosas no centro de treinamento do Flamengo no início de 2019.

São crianças, adolescentes e jovens ainda com pouca ou nenhuma maturidade e conhecimento do mundo, isolados e presas fáceis para toda sorte de violências, abandonos, abusos e assédios. O documentário Atleta A” (2020) disponível na Netflix é primoroso nesse sentido ao revelar os bastidores de uma série de reportagens sobre o caso dos abusos sexuais cometidos durante anos pelo médico Larry Nassar, membro da comissão técnica da equipe de elite de ginástica dos Estados Unidos, além da omissão de treinadores e da própria Federação de Ginástica e do Comitê Olímpico, cientes de todos os abusos cometidos. Difícil não se emocionar com a cena dos depoimentos de ex-atletas no tribunal, em exemplo de sororidade e solidariedade pela dor compartilhada e pelo lastro de destruição deixado nas vidas de gerações de ginastas e suas famílias.

As questões de gênero ali colocadas refletem fatos facilmente reconhecidos por mulheres “comuns” em suas vidas cotidianas. É sabido que a violência contra mulher é essencialmente praticada por pessoas conhecidas, onde o abusador usufrui da intimidade, confiança e proximidade com suas vítimas. No caso em questão, o local do abuso era o centro de treinamento onde as atletas viviam sem a presença dos pais sob a responsabilidade da Federação de Ginástica. A pessoa de confiança era o médico da seleção, aquele conhecido como “bonzinho” pelas meninas, em contraste com os treinadores que praticavam assédio moral e violência psicológica constantemente com as atletas em episódios narrados muitas vezes como o “preço de serem as melhores do mundo”.

Simone Biles é uma dessas vítimas e, junto a mais de 140 ginastas e ex-ginastas, processa a Federação de Ginástica dos Estados Unidos (USA Gymnastics) e o Comitê Olímpico e Paralímpico do país (USOPC), após a condenação criminal do médico. Portanto, quem trata sua desistência de participar das competições de Tóquio como fraqueza ou covardia não só demonstra total falta de empatia pelo caso de assédio amplamente documentado, como desconhece por completo (ou finge não saber) a saga que é ser atleta mulher negra de origem humilde e infância difícil. Sim, a interseccionalidade, aqui entendida como a combinação perversa de iniquidades de gênero, raciais e de classe social, exponencia vulnerabilidades, adoece mais, cobra mais, exclui mais e torna tudo muito mais difícil para as atletas negras. A trajetória da nossa maior medalhista nesses Jogos, a também ginasta negra Rebeca Andrade, abertamente inspirada em outra excepcional ginasta negra Daiane dos Santos, informa igualmente que a luta é desigual e, infelizmente, persistente.

Como muito bem disse a Flavia Oliveira em sua coluna no Jornal O Globo com o sugestivo título “Uma sobe e puxa a outra” : “Não é trivial para uma negra parir um filho no Brasil, país forjado na escravidão e, ainda hoje, habituado a explorar, depreciar, criminalizar, encarcerar, exterminar corpos que, com racismo, com tudo, representam 56% da população, maioria sub-representada”.

Rebeca e tantas outras atletas negras que vimos brilhar ao longo desses Jogos são exemplos de incentivo e espelho de inspiração para um contingente enorme de meninas negras sonhadoras que merecem viver em um país que lhes dê as mesmas oportunidades que as meninas brancas de desenvolver seus talentos sem passarem por tantas provações a mais. Que não precisem sobreviver aos obstáculos impostos por uma sociedade machista, racista e excludente que, hipocritamente, só as engrandecem de quatro em quatro anos e fecha os olhos para o acumulado de violências e abusos em suas histórias de vida em função de seu gênero, raça e classe social. E que, finalmente, sejam celebradas como guerreiras, heroínas e vitoriosas “apenas” por seus talentos, coragem e dedicação em correr como se tivessem asas nos pés, realizar saltos mortais que nos fazem prender a respiração, nos deixar tontos ao rodopiar em piruetas perfeitas, nadar magistralmente como nascidas no mar e fazer gols e pontos espetaculares. Por seus recordes e medalhas. Apenas.

***
Os artigos representam a opinião dos autores e não necessariamente do Conselho Editorial.
Clique aqui para ler outros artigos do autor.

Clique aqui para ler outros textos da autora.