Na foto, Abrão Slavutzky. Edição: Mihai Cauli.
Entrevista com Abrão Slavutzky
Publicada no Grifo 12
SCHUSTER – A mentira vem sendo usada no país como método de governar. Dizem que o presidente e seu ministério são mentirosos profissionais.
ABRÃO – A mentira faz parte da condição humana. Já as crianças mentem e não há problema nisso; é saudável uma criança mentir, ela brinca com a verdade e com a mentira e depois diz “eu tava brincando”. É uma sensação de potência da criança enganar o adulto. A gente fala mentiras que eu poderia qualificar de inocentes, mentiras que não fazem mal, mentiras saudáveis, mas não é desse tipo de mentira que vocês perguntam. A mentira política com objetivos cruéis, é uma mentira sistemática, planejada, que busca enganar para destruir e devastar. É uma mentira para esvaziar a verdade dos fatos. Constroem mentiras que passam por verdades, e esse é o seu trunfo.
O nazismo mentiu de forma planejada, como revela o livro LTI – a linguagem do Terceiro Reich, de Victor Klemperer, e convenceu o povo alemão de que seus grandes inimigos eram os judeus. Também criticavam o capitalismo, perseguiam e matavam comunistas, mas o grande inimigo a ser eliminado da Europa eram os judeus. “Por que perderam a Primeira Guerra? Por causa dos judeus. Por que o Tratado de Versalhes foi uma traição? Por causa dos judeus”. Organizaram um conjunto de mentiras bem montadas, que transformou os judeus em ratos, em seres desumanos. E pessoas cultas, como [Martin] Heidegger, ou Carl Jung saudaram o nazismo como algo maravilhoso. Nunca pediram desculpas por isso. Esse governo agora namora com o nazismo, como revelou um dos secretários de Cultura do governo. Um ministro e o presidente tentaram convencer o país que o nazismo era socialista. Nazismo e Fascismo foram irmãos na Segunda Guerra e seguem sendo.
SCHUSTER – No nazismo já havia um regime de fechamento. O nazismo cresceu numa Alemanha que tinha passado por uma crise enorme desde o final dos anos 20, ainda que em 1932 até estava dando uma pequena recuperada. Mas o Brasil estava numa fase econômica muito boa, com a democracia funcionando bem. Apesar disso, como é que essa mentira consegue tantos apoios e tantos adeptos, consegue convencer tanta gente, a ponto de eleger o Grande Mentiroso?
ABRÃO – Alguns psicanalistas já definiram o atual presidente como sendo um canalha por ser não só um mentiroso cruel, mas sem empatia, indiferente aos mortos e seus familiares, por desprezar a vida nessa pandemia com mais de 580 mil mortos. O Brasil está numa verdadeira marcha da insensatez, como definiu a historiadora Barbara Tuchman, analisando o que levou as civilizações à destruição, desde Tróia até o Vietnam. Aqui foi eleito um presidente que só exalta as armas. Vi uma imagem recente de um carrinho de supermercado repleto de fuzis. Nada como um humorista para nos aliviar do terrorismo. Esse governo sempre assegurou que primeiro iria destruir muito no aspecto social, educação e cultura. E tudo piorou na pandemia, com um presidente negacionista, contra as máscaras, distanciamento e ainda atrasou a vacinação em meses preciosos, o que levou muitos a definirem ele como genocida.
TARSO – É um espanto como um Grande Mentiroso comanda esse país!
ABRÃO – O livro A máquina do ódio, escrito pela jornalista Patrícia Campos Melo, é baseado nas reportagens que ela fez sobre as fake news. O “gabinete do ódio” e seu entorno aprenderam dos assessores de Trump e da Hungria como montar uma máquina de mentiras. A eleição do Bolsonaro foi planejada por grupos daqui e do exterior. Criaram uma facada e ele pulou de 17-18% pra 36% [de índice de intenção de voto] na véspera do sete de setembro. Um dia eu falei sobre a CPI com um conhecido, que disse assim: “Tu me falas bem da CPI, mas o presidente da CPI é um perverso!” Ele escutou isso que foi divulgado nas redes sobre uma perversão, sem provas, e assim anulou todo o trabalho da CPI. Tentam anular o enfrentamento e a resistência que os senadores estão fazendo. As pernas da mentira cresceram. É difícil tirar da cabeça de pessoas que já se acostumaram com uma determinada “verdade”.
Neste momento a Democracia está sofrendo um ataque gigantesco. “Os partidos funcionam, as instituições funcionam”, mas a mentira tomou conta do espaço político. As mentiras vão direto para o whatsapp. Tu abres o celular e está lá a mentira. Mas não está só num, está no do vizinho, está no outro, em setores evangélicos, nos armados, em profissionais que deviam ter mais discernimento. Creio que a democracia ainda não tem armas eficazes contra isso.
TARSO – É interesse de classe. É brincar com o demônio achando que está bem preso pela coleira. É um grau injustificado de ingenuidade social e política dessa direita cheirosa.
ABRÃO – Se a gente estuda a história brasileira logo percebe como essa turma no poder hoje é composta pelos herdeiros da mentalidade da Casa Grande. A gente pensa “ah, essa Casa Grande é coisa do passado”. Sim, mas veja que assim como o racismo não terminou com a abolição da escravatura. Os negros até hoje pagam com suas vidas, os pobres, os índios. Temos uma herança pesada. Getúlio Vargas, quando entendeu o Brasil e mudou, e foi no seu governo de 1951 a 54, quiseram depô-lo e ele se suicidou. Em 1961 ocorreu a Legalidade, que postergou três anos o golpe de 64, início da ditadura militar até 1985. Quando o país tinha recém 30 anos seguidos de democracia, criaram o golpe de 2016. A democracia brasileira é frágil e quem pensa, minimamente, no povo, prendem, exilam, matam ou são tratados como inimigos.
Um general ministro do governo diz que não houve ditadura: “se houvesse ditadura teria morrido muito mais”. E não teve nenhum jornalista que perguntasse a ele quantos teriam que ser mortos para que se configurasse uma ditadura? Dois mil, cinco mil, trinta mil? O Brasil não fez acertos com a sua história, não puniu os torturadores. O Uruguai fez, o Chile fez, a Argentina está fazendo. Pelo lado da oposição se pagou com a prisão, tortura, muitos pagaram com a vida. Dizem ser o Brasil um país que não tem memória. Não é que não tenha memória, é que se importa pouco com sua história. Os professores ensinam sobre as invasões holandesas, as invasões francesas, mas não sobre a invasão portuguesa – esta terra foi invadida por Portugal – e também esqueceram de falar das invasões do Brasil pelos brasileiros armados associados ao agronegócio, aos banqueiros.
TARSO – A democracia parece interessar só aos progressistas. Só nós defendemos democracia e direitos para todo mundo. Só nós garantimos, em nossos governos, a liberdade de todos e do banqueiro…
ABRÃO – Os grandes inimigos da democracia – e isso já escreveu Tzvetan Todorov – são seus inimigos internos. As democracias já não são ameaçadas por golpes externos, mas dentro das próprias democracias se organizam os ataques a ela, esse é o neoliberalismo. Este ataque de agora foi planejado, e isso veio vindo nestes últimos anos desde 2013, que foi um ano importante desse ataque, quando no final dos protestos tinha gente a quebrar prédios, movimentos organizados.
TARSO – Infiltração paga pela direita.
A gente está numa situação difícil e pode piorar a curto prazo. Essa CPI da Covid começa a revelar algumas coisas espantosas. A gente intuía que havia muita negociata com as vacinas, além do atraso criminoso. A pressão contra essa CPI vai crescer, as dificuldades serão grandes, a CPI do Senado tenta ser o contraveneno à mentira. Talvez não tenha mais força que a mentira, mas está tirando algumas de suas máscaras.
SCHUSTER – O que é possível para combater a mentira? Fazer redes sociais no mesmo estilo?
ABRÃO – Não sei, mas será preciso aprender e se tardar esse aprendizado o país sofrerá ainda mais. Diante do veneno é preciso inventar contravenenos eficazes. Tua pergunta é importante e creio que mereceria muito mais atenção dos políticos, dos pensadores, da turma da informática.
TARSO – E a não vontade de enorme parcela da população em cogitar que talvez o que ela ouve não seja verdade? A descrença sobre uma outra versão que não seja a versão que lhe apela. Isso é um processo psicológico ou auto referência cultural-ideológica?
ABRÃO – Eis uma pergunta difícil, que expressa o espanto diante da crueldade, da ignorância Deveríamos não ter desistido de conversar com gente conhecida. Não fomos convincentes. Em alguns casos em que tentei e fracassei me senti em dívida, fiquei com um mal-estar. Entretanto, como disse o filósofo Vladimir Jankelévitch, há uma incurável tolice da mediocridade humana. O incrível é que precisamos lutar contra e não desistir jamais, porque se a gente desiste torna-se cúmplice da mediocridade. Confesso que já desisti, mas hoje estou de acordo com Jankelévitch. Aliás, foi lendo ele, a quem rendo tributo, que me convenci sobre o quanto o humor é essencial. Por fim, uma última reflexão sua que nunca quis escrever e é sobre a mesquinhez do coração do homem que não se pode extirpar. Mesquinhez que aparece como inveja, sordidez ou avareza inextirpável do ser humano. Relendo a entrevista desse filósofo francês do século XX, parece que ele falou para nós. Não respondi tua pergunta, só tentei dizer algumas palavras para seguir a conversa.
TARSO – Para entender tua forma de pensar, como é ser um psicanalista que também pensa a sociedade?
ABRÃO – Freud mudou sua forma de pensar a partir da Primeira Guerra Mundial. Primeiro ele esteve ao lado da Alemanha, torcendo pela Alemanha – ele morava em Viena, império Austro-Húngaro. Os filhos dele foram pra guerra. Aí, em 1915 tem um choque de realidade e se dá conta do óbvio: a guerra era uma desgraça, um conflito destrutivo. Ao terminar a guerra ele escreveu um de seus livros mais importantes, introduzindo a pulsão de morte, Mais além do princípio do prazer, onde Freud repensa o ser humano. Depois, A Psicologia das Massas, em que escreve que a psicologia é individual e, simultaneamente, psicologia social. É um livro essencial para se pensar as massas que buscam no líder um “ideal de Eu” para se identificar, ideal que a pessoa busca em alguém para conformar-se. O líder de uma massa, o Mito, representa uma parcela da população que prefere as armas à educação, fuzis e não feijão, despreza a cultura e as ciências. Como é que um quarto da população se identifica com um presidente assim? Forte, branco, simplório, arrogante, violento, onipotente, tem o apoio dos armados e seus apoiadores vibram com suas vociferações. Mas isso faz parte de um certo Brasil onde as armas são idealizadas, a justiça e a política desprezadas e um ódio aos que sonham com um país para todas e todos.
SCHUSTER – A questão da mentira é que ela acaba gerando outras consequências, a violência, a crueldade, a covardia. Qual é a ligação entre a mentira e esse governo, que está sempre ameaçando se valer da violência?
ABRÃO – A turma da crueldade tem um truque, que é fantástico: os violentos, os assassinos sempre se dizem inocentes. Fazem um processo que se chama de vitimização. O assassino se diz vítima, o Bolsonaro diz que não pode governar porque a Justiça não deixa, os governadores não deixam, os prefeitos não deixam. Ele se vende como um coitado, é uma vítima, não um incompetente. Os armados são vítimas, nunca são culpados de nada, não têm autocrítica pra fazer. No passado foram ao sertão baiano e mataram o Antônio Conselheiro e milhares de pessoas, mas não fizeram isso porque estavam a serviço dos latifundiários e sim porque os pobres “estavam fazendo bagunça, atrapalhando os negócios, eram perigosos”. A história brasileira não os julgou, como não os julgou em Santa Catarina [NR: na Guerra do Contestado, entre 1912 e 1916, morreram cerca de 8 mil pequenos proprietários rurais e mil militares]. Nunca foram julgados e aí a população pensa que eles não fazem o mal.
TARSO – Nessa vitimização tem outro truque, não? Possibilitar que a população, que é vítima histórica das elites, se identifique com ele em relação aos poderosos. A esquerda participa da política, tem políticos, é parte dos poderosos; o juiz, liberal ou progressista, faz parte dos poderosos; e o Bolsonaro se diz contra os poderosos… identificação direta, o que aumenta o grau de perigo à democracia e a dificuldade de desmontar esse truque.
ABRÃO – Muito grande. O esforço que a Globo faz hoje para desmontar o que ela mesma fez não é pequeno – e não assume nenhuma responsabilidade por isso! Mas eles trabalharam muito para isso. Era todo dia, todo dia, todo dia. Não foi pouco.
TARSO – Não há perdão possível para a Globo. É cúmplice pelo assassinato da democracia no Brasil.
ABRÃO – Uma violência que fazem no Brasil é o ataque à memória, e nós precisamos da memória para ter imaginação, precisamos da memória para pensar o futuro. Atacar a memória é atacar a imaginação. Qual é o grau de imaginação que tem esse governo e seus aliados? É o grau de imaginação do ódio, da guerra. Não é a imaginação da criatividade para construir o futuro. Hoje vivemos uma das piores invasões que o Brasil sofreu em sua história. Dividiram o povo brasileiro entre os que se beneficiam do governo e os opositores, tratados como inimigos de guerra.
TARSO – Esse pensamento fascista, excludente, afora os primeiros anos da ditadura de 1964, sempre foi feito na surdina, não sei se por vergonha ou por prudência. Mas recentemente passaram a fazer isso em público, orgulhosamente. A invasão de terras indígenas é feita às claras, com argumentos: “eles (os indígenas) atrapalham o desenvolvimento, impedem a produção de alimentos, estão em cima de minérios valiosos, são preguiçosos”. Perderam a vergonha de dizer isso em público. E tem muita gente do povo, pobre, que concorda com isso!
ABRÃO – O que acontece com o povo diante disso? O povo brasileiro ainda está bastante passivo. Mas olha o povo dos EUA, que deu 75 milhões de votos para o Trump e ameaça o eleger na próxima eleição. Nós estamos diante de uma situação nova na história. Essa máquina do ódio é muito bem organizada, incorporando as experiências dos Estados Unidos e da Hungria, que trouxeram para cá. Estamos diante de um problema muito difícil.
MOISÉS – Eu gosto dessa conversa sobre a memória. Na Argentina eles têm um compromisso com o passado como coisa que não deve ser repetida. O Uruguai também tem isso. O Uruguai realiza, todos os anos, uma marcha silenciosa pela memória, pelos desaparecidos. Não é nem por todos os que foram mortos pela ditadura, é pelos desaparecidos. A Maria do Rosário [NR: deputada federal pelo PT-RS] propôs que, em nome da memória, se identifique os prédios onde mataram e torturaram durante a ditadura. A Alemanha tem isso com as marcas do nazismo, para que isso não aconteça de novo. Pela memória dos que foram torturados, mortos, desapareceram. A juventude não tem conexão com nosso passado. Temos que enfrentar esse problema. Na mesma semana, dois generais, dos mais importantes do governo, foram na Câmara Federal dizer que não houve ditadura! Olha o deboche desses caras! Gostei dessa tua fala sobre memória, porque é isso que vai nos proteger.
ABRÃO – Se uma pessoa perde a memória ela perde sua vida, ela não sabe quem é. Convivi uma ou outra vez com pessoas que perderam a memória e é de uma tristeza sem fim. Estava o corpo, mas parecia estar sem alma. Gabriel García Márquez escreveu Viver para contar, mas para contar é preciso ter memória. Lembrar os brasileiros que lutaram contra a ditadura e foram torturados, mortos, faz parte da História. Criaram a ilusão, a mentira, de que o Brasil é um país pacífico. Tentam esconder a nossa crueldade.
TARSO – Esse é um dos grandes embates: a disputa pela versão do fato contra uma fábrica montada para produzir mentiras. Estamos a ouvir, agora mais do que há dez, 20 anos, que a ditadura de 1964 a 85 foi um período de progresso, com segurança, com desenvolvimento social, sem corrupção, sem assaltos. Uma versão de que a ditadura foi melhor que a democracia para a sociedade. Ainda estamos disputando versões sobre os últimos séculos! O que nos devolve ao tema da mentira utilizada como processo governativo. O surpreendente é a intencional confusão entre os fatos e as fake news, como modo de fazer política e governar, a um ponto de que tu não sabes mais o que é verdade. Aí começa a ficar difícil contrarrestar. É uma deliberação política confundir verdade e mentira. É o que possibilita dizer que “todos os políticos são iguais”, “todos são corruptos”, para, finalmente, tipos como Bolsonaro pedirem votos dizendo que são contra a política, contra os políticos, contra a corrupção da “velha política”.
MOISÉS – Nós temos que inventar aqui alguma coisa pra levar pra rua a memória deste período, a memória dos que foram presos, torturados, desaparecidos pela ditadura. Temos que criar algum movimento de respeito pela História, temos que desenvolver um dever de memória.
ABRÃO – Moisés fizeste uma observação importante: estamos conversando, estamos analisando, mas temos que fazer mais do que isso. Às vezes começo a falar sobre o Brasil e me emociono frente à injustiça, frente à desigualdade, o racismo estrutural, frente à crueldade. São temas que tocam, emocionam, atravessam a vida, nós que somos favorecidos nessa sociedade tão desigual.
TARSO – Abrão, repetidamente, ao longo dos anos, e por vários meios, tu declaras uma fé no humor. Inclusive do ponto de vista político. Tua maravilhosa crônica de hoje [20/8/2021] volta ao tema [“Combater a crueldade requer humor, poesia, ciência, construir a solidariedade, ir às ruas e apostar sempre no humanismo. Para imaginar o amanhã é preciso coragem, dignidade, sem esquecer que a covardia é a mãe da crueldade” – filósofo Michel de Montaigne].
ABRÃO – Sim, a covardia é a mãe da crueldade. Um torturador, ou quem elogia a tortura, são covardes, atacam pessoas indefesas. O mundo está dividido entre os bem humorados e os mal humorados. O [filósofo Ludwig] Wittgenstein disse que “o humor é uma forma de ver o mundo”. Se os humoristas conseguissem convencer o mundo sobre sua forma de ver a vida, o mundo seria melhor. Eu tenho fé no humor porque as melhores coisas da minha vida foram graças ao humor: O humor brasileiro, o humor judaico, o humor argentino. Se tenho alguma oração, alguma reza, ela tem no humor seu cerne. O humor está ligado ao amor. Amor sem humor é chato. Tu imagina um cara mal humorado pra fazer o amor. O humor é uma vacina contra o desespero, já o governo brasileiro não tem humor, tem ironia – e ironia das mais grosseiras, da mais vergonhosa. Não é uma ironia fina. O nazismo não tinha humor, o stalinismo não tinha humor. Os humoristas eram caçados e mortos. Eu tenho fé e ao mesmo tempo tenho ceticismo, sou da geração de 68, depois encontrei a Psicanálise e cheguei, mais uma vez, ao humor. O Luís Fernando Veríssimo escreveu na orelha do livro Seria trágico se não fosse cômico que o humorista e o psicanalista fazem o mesmo: procuram o outro lado das coisas.
MOISÉS – Existe “lugar de fala” no humor? Por exemplo, só judeus podem fazer humor sobre judeus?
ABRÃO – O dia que houver “lugar de fala” no humor, termina o humor. Entretanto, gosto da expressão “lugar de fala”, uma forma pela qual a cultura negra defende seu espaço para falar de temas antes só abordados por brancos. Já o humor ou é livre ou não é. Claro que tem leis, mas a liberdade tem que ser exercida plenamente. Um exemplo é que o melhor do humor judeu é sua irreverência com Deus, ou com o Povo Eleito. O Otto Maria Carpeaux contava uma história, ambientada em Praga de 1934, em que um judeu diz pro outro: “Os tempos estão cada vez piores. Tem muito antissemitismo!” Aí o outro diz: “Mas não esqueças que somos do Povo Eleito”. Aí o primeiro diz: “Pô, mas já não está na hora d’Ele escolher outro povo?!”.
SCHUSTER – O melhor humorista é o que ri de si mesmo.
ABRÃO – Sem dúvidas, precisamos aprender a rir da seriedade que temos, até dessa nossa conversa que gosto, mas estamos pesados, numa realidade pesada. Com respeito pelo luto e aproveitando a pergunta sobre o humorista, recordo duas coisas: uma é o humor do povo brasileiro. O Gregório Duvivier, no Gregnews, tem nos alegrado e revelado muita coragem. Ele tem um vídeo inteiro só sobre o Exército que vale a pena ver. Aqui temos Grifo, que é um polo de resistência. Já tinham feito aquela exposição na Câmara de Vereadores [NR: ação da Grafar – Grafistas Associados do Rio Grande do Sul – contra a censura de uma exposição de humor no Legislativo de Porto Alegre], bons humoristas, com boas histórias. A segunda coisa que desejo lembrar é o quanto o humor é um jogo. Duas questões finais: creio que a nossa conversa foi boa, mas muito séria. O humor é coisa séria, mas prima pela leveza, o humor sabe brincar mesmo em tempos de terror e morte como os que se vive. Recomendo, finalmente, o documentário Tarja Branca, dirigido por Cacau Rhoden, que está no NOW e no Youtube. Revela um Brasil colorido, que sabe brincar, dançar, cantar, se divertir. Quase todas as danças, a música, a ginga vieram dos negros nas sofridas e mortíferas senzalas. Precisamos nos cuidar para não afundar e mesmo em tempos sofridos precisamos não esquecer o quanto o brincar é essencial para tudo. É uma potência de vida, cura para muitos males, pois há nas crianças uma beleza que é preciso recuperar.
SCHUSTER – Humor é coisa séria?
ABRÃO – E agora? Escrevi um livro ao longo de anos para tentar demonstrar que é, mas vocês sabem, por experiência, que o humor quase não entra na Academia, é um tema marginal até na Psicanálise. O humor só é levado a sério mesmo quando toca o autoritarismo. Eles têm suas razões, ficam incomodados de serem definidos como genocidas, cruéis. Parêntesis: pode um presidente pedir a seus seguidores invadirem hospitais? Aqui pode. Aliás, o humorista Aroeira foi processado por suas incríveis charges sobre esse triste episódio da História Brasileira.
O humor é um dom precioso e raro, como definiu Freud há quase cem anos em seu breve estudo Humor. Nunca tinha lido uma exaltação desse homem tão reservado e que adorava contar e escutar piadas.
Nesse final de boa conversa, peço licença para um comunicado que pode interessar: em outubro a editora Diadorim fará cinco anos e lançará o livro Imaginar o amanhã, feito pelo Edson Luiz André de Sousa, amigo, colega, estudioso de arte, utopia e psicanálise, doutor e pós doutor, e por mim. Nosso trabalho começou em 2019 e atravessou a pandemia. Foi um esforço que fizemos pra refletir sobre o que acontece aqui hoje a partir da nossa vivência como analistas inquietos diante do autoritarismo. Imaginar é um ato que instaura espaços de revolta e de esperança, abre para o desconhecido e traz o ontem para o hoje e assim pensar o amanhã. A luta pela democracia é um caminho sem fim e imagino que devemos nos sentir bem pois nossas armas são o amor ao conhecimento, o amor à paz, o amor ao nosso povo, pois foi aqui que nos formamos. Temos todos obrigação de seguir, nunca desistir dos sonhos para seguir imaginando o amanhã.
Entrevista publicada originalmente no Grifo No. 12, setembro de 2021. Clique aqui para rir muito com as charges e as matérias desta publicação de humor.
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