A questão do Afeganistão, em tempos de rede, possibilitou uma quantidade enorme de disparates e preconceitos, a maioria vindos de fora da rede. Tudo oriundo da má informação, interesses escusos e da histórica ignorância ocidental a respeito do que se passa além da Turquia. Primeiro, a sororidade substituiu a solidariedade. Se obviamente as mulheres afegãs precisam do apoio internacional em função do tratamento vil que sofriam a partir de uma leitura enviezada do Corão, não é menos verdade que toda a população foi submetida a uma brutal ocupação estrangeira de 20 anos depois de uma guerra que colocou no poder um bando de corruptos e traficantes de papoula que jogou o país num arremedo de democracia e aprofundou a miséria e as diferenças sociais – cenário que acalentou o talibã nestas duas décadas.
Se esses fundamentalistas foram viabilizados pelos EUA na luta contra a União Soviética, é preciso compreender que hoje eles são a opção da população afegã para garantir sua identidade cultural e existencial. Se são indesejáveis, hoje são realidade: China e Rússia viram isto imediatamente. Como esperado, o desastre Biden se precipitou nesta questão internacional e, de novo, possibilitou que este grupo, e não qualquer outro, se apresentasse como alternativa de poder.
A nova geração de talibãs está mentindo, como afirmam os “analistas” de plantão? Pode ser que sim e pode ser que não. A verdade é que se passaram 20 anos desde a última passagem do talibã pelo poder no Afeganistão e hoje a nova geração parece disposta a mantê-lo. As necessárias críticas culturais e de gênero ao tratamento que os fundamentalistas reservam às mulheres precisam ser mediadas, primeiro pelo olhar a outros países da região, como Catar e Arábia Saudita, segundo por necessárias leituras de feministas muçulmanas. Sim, existe um feminismo que adota a religião na região para além do permitido e acolhido pela imprensa internacional. Atribuir barbárie ao oriente é um traço colonial do qual poucos escapamos. São clássicas as opiniões de pensadores como Hegel e Marx sobre a região e esta opinião permeia quase todo debate, mesmo o de esquerda ou feminista bem intencionado.
Sem justificar o talibã, precisamos entendê-lo de verdade para impedir que o fenômeno se repita com os fundamentalistas neopentecostais que já tomaram de assalto o governo e o parlamento brasileiros e se preparam para impor seu olhar pseudo teológico do mundo sobre o estado nacional. O objetivo da guerra híbrida, sabemos hoje, não é a tomada dos estados nacionais e sim a sua destruição. Portanto, defendê-los é a nossa tarefa histórica, ou então nos submetermos direta e docilmente às corporações que destroem estes estados com “primaveras” de climas tenebrosos. O aumento do feminicídio no Brasil, recorde no mundo, deveria nos fazer mais cautelosos nas análises.
Artigo publicado originalmente no Grifo No. 12, setembro de 2021. Clique na imagem para rir com as charges e as matérias desta publicação de humor.
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