Há um diagnóstico, já muitas vezes repetido, identificando esse movimento de extrema direita que desabrochou no país como uma grande reação de certo “Brasil profundo”, até muito recentemente constrangido por ventos históricos que sopravam no sentido da modernização de suas relações sociais.
Com efeito, a sociedade brasileira se constituiu sobre bases violentas, muito mais calcadas em meras relações de força e fato do que em princípios filosóficos abstratos. Assim, tivemos a onipotência política e jurídica das classes dominantes, emblematizada nas figuras do senhor de engenho e do “coronel”; a vergonha da opressão racial, segundo Nabuco, estigma indelével de nossa nacionalidade, e, ainda, a opressão de um sexo sobre o outro, materializada no patriarcado resistente, do qual somente a partir de algumas décadas fomos aos poucos nos libertando. Todas essas distorções vincaram fortemente a constituição do inconsciente nacional. Em todas elas temos, como elemento de ligação, o sentimento do poder que não é limitado por qualquer norma, subjetiva ou positiva.
Todavia, a sociedade começou lentamente a se transformar, sobretudo após a redemocratização. Valores humanistas foram sendo invocados no sentido exatamente de se estabelecerem limites ao exercício do poder, que se julgava sem freios. A democratização política foi penetrando nos rincões e desalojando o coronelismo clássico; os direitos das minorias e das mulheres foram sendo reconhecidos como pressupostos da convivência civilizada.
Essas mudanças geraram a nostalgia daquela formação originária, à qual se conferiu um caráter quase mítico. “Quero o meu país de volta”, tornou-se o grito do regressismo. Entretanto, o fluxo histórico tem sua força e a restauração anacrônica de realidades pretéritas só se pode fazer mediante um projeto violento e abertamente autoritário. E aqui temos um ponto.
O discurso de criação do ideal mítico das virtudes da sociedade primeva, não deturpada pelas aberrações introduzidas pela modernidade, se constrói essencialmente sobre a ideia da ordem e de seus símbolos: as forças armadas, a família, as Igrejas e outros. A defesa dessa ordem supostamente virtuosa exalta até mesmo o recurso à ditadura como instrumento válido, se necessário, para a submissão de maiorias recalcitrantes.
Entretanto, toda ordem institui sua positividade e seus garantidores: a lei, os ritos, os tribunais, etc… Ocorre que o discurso autoritário da extrema-direita se enreda no paradoxo libertário: questiona a ordem enquanto limite ao seu agir desimpedido; dessacraliza seus símbolos pelo insulto iconoclasta; denuncia a ditadura(!) da lei; esvazia toda autoridade de seu poder simbólico quando essa se lhe contrapõe – os tribunais, a ciência,… Suprema contradição: o autoritarismo renega na autoridade sua própria etimologia; torna-se monstruosamente anárquico. O que deseja não é mais a força da tradição, concretizada nas instituições. O autoritarismo não é mais conservador, mas anômico; já não postula qualquer ordem de caráter impessoal, mas aquela que se reduz ao seu arbítrio absoluto e ao poder de submeter à força toda dissidência. O discurso da ordem se contradiz, no instante exatamente seguinte àquele em que é proferido.
Provavelmente encontraremos a causa disso no fato de que esse movimento representa a materialização das forças psíquicas instintivas da destruição. Sua etiologia não envolve, assim, as faculdades da racionalidade. O nível discursivo a que se obriga, enquanto instrumento inevitável de comunicação e mobilização, se compõe apenas de pretextos fracamente articulados que o oportunismo oferece. Na ausência de princípios racionais, é um corpo retórico invertebradamente amorfo; na realidade, pura práxis. Na ausência de compromissos teóricos, a contradição se torna apenas um recurso a mais que as eventuais conjunturas recomendam.
Já a civilização tem origem nos processos inversos. É a imposição de normas racionais sobre os impulsos primitivos do eu, na criação de uma ordem racionalmente expressável. Por isso a contradição é nela um elemento mortal: não pode se legitimar sobre fundamentos visivelmente falsos.
É com isso que estamos confrontados: razão x instintos destrutivos; civilização x barbárie.
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