O imbróglio que se tornou a aprovação do Auxílio Brasil, novo programa de transferência de renda do governo federal, mostra bem como continuamos batendo cabeça, seguindo nesse debate de forma desconectada de uma perspectiva mais ampla de proteção social e condições mínimas de vida para a população e sem resolver as questões mais estruturais em torno do combate à pobreza no país.

Tive a oportunidade de discutir alguns desses pontos em dois outros artigos aqui no blog – “Pobreza e transferência de renda” (11/08/2020) e “Política social: governo não dá o peixe nem ensina a pescar” (07/02/2021) – ao tratar dos Programas Bolsa Família e Auxílio Emergencial e suas interlocuções com as políticas assistenciais previstas constitucionalmente e em legislações próprias.

Ao fim de 2021, o prolongamento da crise sanitária com as novas variantes e a persistência do discurso antivacina, antimáscaras e contra as demais medidas de proteção de efetividade reconhecida seguem sendo um desafio, principalmente em um cenário de manutenção do teto de gastos sociais, aprofundamento da crise econômica, desemprego acima de 12% da força de trabalho, recessão técnica, inflação e dólar altos. Os indícios de agravamento da pobreza e da desigualdade se tornam mais evidentes a cada dia, presença constante nos noticiários, em nosso caminhar pelas ruas e nas denúncias de ONGs e de movimentos socais que atuam nas áreas mais periféricas das cidades.

Para além da conjuntura adversa e da não solução dos problemas institucionais históricos nas políticas de combate à pobreza, a discussão do novo programa se apresenta com fins explicitamente eleitoreiros, ancorando-se nos resultados positivos do Auxílio Emergencial durante a pandemia, principalmente nas regiões onde Bolsonaro mais perdeu votos na eleição passada. Vale lembrar que o Auxílio Emergencial, nos moldes em que foi aplicado, foi uma conquista dos partidos de oposição e da sociedade civil, já que a proposta inicial do governo era um benefício com valor similar ao benefício médio de R$ 200 praticado pelo Bolsa Família no início de 2020.

Dados recentes do estudo Síntese de Indicadores Sociais 2021 do IBGE mostraram o impacto do benefício de R$ 600 do Auxílio Emergencial – que poderia chegar a R$ 1200 por família – na população mais vulnerável (aqueles que já recebiam Bolsa Família e trabalhadores informais de baixa renda), em especial no Norte e no Nordeste do país, regiões historicamente com maiores contingentes de pessoas em vulnerabilidade social e rendimentos mais baixos.

A participação dos benefícios sociais no rendimento domiciliar total, que era de pouco mais de 4% nessas regiões, passou para 11,6% no Norte e 12,8% no Nordeste, enquanto para as demais regiões do Centro-Sul essa participação ficou entre 3,0% e 4,6% no mesmo ano. Esse aumento de participação se deu não apenas em função dos maiores valores de benefício e ampliação do público-alvo, mas também como consequência da perda de participação da renda do trabalho no mesmo período.

Como consequência, embora o valor do rendimento domiciliar per capita médio no país tenha caído 4,3% entre 2019 e 2020, com quedas em torno de 6% no Sul-Sudeste, houve aumento no Norte (2,2%) e Nordeste (0,9%). O impacto dessas transferências monetárias para a base da pirâmide de rendimentos fez cair o Índice de Gini, principal indicador de mensuração da desigualdade de renda, de 0,544 para 0,524 no mesmo período. Sem os benefícios sociais concedidos em 2020, o Gini teria sido de 0,573, pico histórico da série iniciada em 2012.

Por sua vez, o percentual de pessoas vivendo abaixo da linha de pobreza definida pelo Banco Mundial (US$ 5,50 por dia em termos de Poder de Paridade de Compra – PPC ou R$ 450 de rendimento domiciliar per capita mensal) caiu de 25,9% para 24,1% da população no Brasil entre 2019 e 2020, influenciada pelas quedas observadas no Norte (de 43,1% para 36,8%) e Nordeste (de 44,6% para 40,5%). Nas demais regiões a proporção de pobres medida por essa linha não teve variação significativa. Sem os benefícios dos programas sociais de 2020, quase 1/3 da população brasileira estaria em condição de pobreza monetária, atingindo 48,9% da população residente no Norte e 52,8% no Nordeste.

Importante frisar que a concessão do Auxílio Emergencial no valor mínimo estabelecido (R$ 600) tinha objetivos assistenciais de alívio da pobreza e de substituição da renda do trabalho perdida em função das restrições econômicas. Já em fins de 2020, ainda com a pandemia em curso e sem recuperação da atividade econômica, os valores do benefício emergencial foram reduzidos para a metade (Auxílio Emergencial Residual, quatro parcelas). A partir de 2021, as parcelas mensais passaram a variar de R$ 150 a R$ 375, conforme o perfil do beneficiário e composição da família (Auxílio Emergencial 2021, quatro parcelas, prorrogadas por mais três).

É nesse contexto de crise, reprovação crescente e baixa popularidade do presidente da República que surge a proposta inicial do governo para o novo programa social, visando substituir o Bolsa Família, legado e imagem de Lula, principal adversário político para as eleições de 2022. O Auxílio Brasil, instituído via Medida Provisória nº 1.061 (09/08/2021) e regulamentado pelo Decreto Presidencial nº 10.852 (08/11/2021), passou, então, a ser discutido na Câmara e no Senado com muitas questões ainda pendentes para sua efetiva implementação.

Auxílio Brasil: planejamento capenga

O planejamento capenga do novo programa sequer apresentou fonte de custeio. O orçamento incerto ficou condicionado à aprovação da chamada PEC dos Precatórios, na qual prevalece a política do cobertor curto: tira-se da obrigação da União em pagar dívidas reconhecidas pela Justiça em ações que não cabem mais recurso para financiar o novo programa. O benefício de R$ 400 prometido e propagandeado pelo governo ainda está em negociação para ser implementado de forma temporária por meio de um benefício complementar que vigorará apenas até o fim de 2022, ano eleitoral.

De acordo com Bartholo et al (2021) , fatiar o Auxílio Brasil em uma parte permanente e outra temporária foi a manobra encontrada para viabilizar o programa. Dessa forma, ele pode ser inserido nas exceções da Lei de Responsabilidade Fiscal – LRF (Lei Complementar no. 101/2000) que define que novas despesas de caráter continuado, de duração maior que 24 meses, precisam ser quantificadas e ter a indicação de sua fonte de custeio (Art. 17). Ainda segundo as autoras, “tornando parte do Auxílio Brasil uma despesa temporária, o governo se livra de cumprir essa determinação”. Ou seja, o horizonte de garantias de orçamento e funcionamento do novo programa peca pela falta de transparência e alto grau de incerteza, herança nefasta que ficará para o novo governo que assumirá em 2023.

Como resultado do impasse, em novembro de 2021, com o Bolsa Família já extinto e um arremedo de Auxílio Brasil em vigor, o valor médio pago pelo programa para 14.506.301 famílias foi de R$ 224,41, pouco acima do que já era praticado pelo Bolsa Família e bem inferior ao prometido.

Dados do Cadastro Único do Governo Federal referentes a outubro de 2021 apontam para um total de 14.654.783 beneficiárias do Bolsa Família (redução, portanto, de quase 150 mil famílias na transição para o Auxílio Brasil) e uma lista de espera de 3,3 milhões de famílias cadastradas em situação de pobreza ou extrema pobreza que não recebiam benefícios. Com a nova linha de R$ 200, a fila tende a aumentar. A promessa do governo é beneficiar 17 milhões de famílias até dezembro de 2021, mas não param de chegar denúncias sobre pessoas pobres e extremamente pobres que ficaram de fora do novo programa ou tiveram seus valores de benefícios reduzidos em relação ao que recebiam com o Bolsa Família.

Essa discussão esbarra naquilo que sempre apontei como principal fragilidade do Bolsa Família e que permanece no Auxílio Brasil. Mais uma vez, o acesso ao principal programa de alívio da pobreza não se constitui em direito adquirido às famílias elegíveis, ficando à mercê de governos e orçamentos. Para se ter acesso ao Benefício de Prestação Continuada – BPC, por exemplo, que usufrui de garantia constitucional de acesso a idosos e pessoas com deficiência com renda familiar per capita inferior a ¼ de salário-mínimo, basta ir a uma agência do INSS e dar entrada na requisição com as comprovações devidas (renda e perícia, no caso da deficiência) que o benefício é pago independentemente da discussão de disponibilidade ou não de fundos.

Infelizmente, o bem-estar da população, principalmente daquelas em situação de maior vulnerabilidade social, parece ser apenas um detalhe nessa discussão. Em novembro de 2021, o DIEESE calculou que o salário-mínimo necessário para fazer frente às necessidades básicas da população deveria ser de R$ 5.969,17. Mas, governo, deputados e senadores estão fazendo malabarismos contábeis temporários para conceder um auxílio (ainda hipotético) de R$ 400 para os mais pobres. Beira o inacreditável esse descaso histórico e a falta de planejamento. Uma questão séria como a destinação do Orçamento Público brasileiro vira uma conta de botequim, com margem para “orçamentos secretos”, mas não para tirar milhões de brasileiros da miséria e da fome.

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Os artigos representam a opinião dos autores e não necessariamente do Conselho Editorial do Terapia Política. 

Ilustração: Mihai Cauli  e  Revisão: Celia Bartone 

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