Considerações sobre a possível chapa Lula-Alckmin

Em flagrante contraste com a discrição dos dois maiores envolvidos no caso, o Brasil inteiro parece não ter outro tema além da possível chapa Lula-Alckmin para 2022. Como regra geral, as manifestações são de surpresa. Mas há surpresos que saúdam e festejam a “geringonça”, enquanto outros tantos que se mostram chocados e a execram. E tal como em outras vezes, os “contrários formais” vêm revelando sua “identidade dialética” na nova polêmica.

A esquerda mais radical tem se mostrado revoltada com o retrocesso político representado por uma composição do lulo-petismo com um personagem que é mais do que um político de centro-direita: é um ícone entre os “tucanos raiz”. A direita mais extremada também bate forte na chapa Frankenstein, pois já antecipa o que ela significaria para invalidar a caracterização da candidatura Lula como esquerdista, avessa ao diálogo, populista, fisiológica e corrupta. Alckmin não inviabiliza estas críticas por ser um político exemplar, acima de qualquer suspeita. Mas há o fato de a mídia conservadora tê-lo apresentado como o exemplo do antipetismo ao longo de décadas. E, agora, ele mesmo estaria dando seu aval para o retorno de Lula à presidência como segundo da chapa.

De outro lado, a “geringonça” vem recebendo aplausos daquela parcela da esquerda brasileira mais preocupada com a ampliação da base de apoio à candidatura e de sustentação de um futuro governo Lula do que com a pureza e o pedigree político do vice. Flávio Dino sintetizou esta perspectiva com ironia e agudeza: “Não se faz sanduíche de pão com pão. Sanduíche é mistura”. E a chapa também foi saudada pela fração menos conservadora dos (já quase ex-) defensores da “terceira via”, aflitos com a baixa adesão popular e a dificuldade de decolagem da candidatura Ciro. Este grupo resistia à candidatura Lula acima de tudo por temer que o retorno do PT ao Executivo Federal também significasse o resgate da polarização política que marcou o país entre 1994 e 2016. Esta polarização estaria na base da articulação do golpe-impeachment de 2016 e da farsa judicial responsável pela prisão de Lula após sucessivas vitórias eleitorais do PT sobre o PSDB, a despeito da hegemonia política deste último partido em São Paulo (um terço do PIB nacional) e entre a elite econômica nacional pretensamente intelectualizada, que rima modernização com privatização, mas não com inclusão.

Os riscos deste déjà-vu ao revés seriam evidentes em um país de instituições políticas frágeis, mas com sistemas de Justiça e Segurança (Judiciário, Ministério Público, Polícias e Forças Armadas) tão fortes quanto propensas a exercer sua autoridade com base em convicções ideológicas e compromissos com a sustentação da ordem social excludente. Na perspectiva destes analistas, a composição Lula-Alckmin eliminaria os riscos de retorno ao passado, solapando os argumentos que – a despeito da postura do próprio candidato – ainda emprestam alguma racionalidade à candidatura Ciro.

Mas a unidade dos contrários à qual nos referimos acima vai muito além do acordo (tão recorrente) entre ultraesquerda e ultradireita na crítica radical às composições políticas conciliadoras ou do acordo entre esquerda e direita moderadas no aplauso a estas mesmas composições. Na verdade, a grande unidade de contrários encontra-se na surpresa universal e na disposição de tantos a polemizar sobre a chapa Lula-Alckmin como se ela contivesse alguma dimensão disruptiva. Este é o grande equívoco que nos permite caracterizar toda a polêmica como essencialmente falsa. Senão vejamos.

Em uma das análises mais acuradas do significado político da “geringonça 2022”, o consultor político Renato Pereira afirma que a composição Lula-Alckmin “equivaleria à Carta ao Povo Brasileiro assinada em 2002 pelo petista… divulgada com o objetivo de diminuir a resistência ao nome de Lula no mercado financeiro. Nela, [Lula] comprometia-se a respeitar contratos, preservar o superávit primário e reduzir a dívida pública”.

Bingo! Muito mais do que a escolha de José Alencar como vice, foi na famosa Carta que Lula declarou os limites de seu futuro governo em termos de modernização e ruptura com os dois mandatos de FHC. Mas ainda é preciso dar um passo a mais na análise e fazer a pergunta realmente central: por que a mesma esquerda que recebeu a Carta de 2002 com magistral tranquilidade reage, hoje, com hostilidade à possibilidade de composição com Alckmin?

A resposta não é simples – tem inúmeras dimensões, todas elas imbricadas. Mas um elemento destaca-se entre os demais: o compromisso expresso em uma composição de ex-antagonistas é óbvio e transparente; enquanto o compromisso de manutenção de uma determinada política econômica é sutil e relativamente incompreensível para quem não é economista, banqueiro ou operador do mercado.

Na realidade, acredito que a oposição entre a transparência dos acordos que estão sendo firmados em 2021 e a opacidade dos acordos que foram firmados em 2001 e 2002 seja ainda mais profunda. Não há dúvida de que os acordos subjacentes à Carta ao Povo Brasileiro de 2002 foram articulados sob a liderança de Antônio Palocci. O que não podemos asseverar (malgrado os abundantes indícios) é se o “mercado” já sabia, muito antes das eleições de 2002, que a equipe econômica do primeiro mandato de Lula: (1) seria gerida por Palocci; (2) contaria entre seus principais quadros com Henrique Meirelles, Marcos Lisboa e Joaquim Levy; e (3) adotaria padrões de gestão monetário-cambial e metas de superávit primário como percentagem do PIB ainda mais ortodoxos e consistentes com os interesses do setor financeiro do que aqueles que caracterizaram o segundo mandato de FHC.

Mas a opacidade dos movimentos de 2002 não é capaz de explicar toda a diferença da reação da esquerda aos acordos sinalizados, à época, pela Carta, e hoje, pela possível dobradinha Lula-Alckmin. Afinal, o que era obscuro até a posse ficou cristalino nos primeiros meses do primeiro mandato de Lula, sem que emergisse qualquer crítica ou reação substantiva dentro da esquerda do PT.

A mobilização pela criação do PSOL só emergiu quando as políticas econômicas de inflexão neoliberal dos primeiros anos do primeiro mandato de Lula atingiram os interesses corporativos de parcela do funcionalismo público federal, com a pequena Reforma da Previdência de 2003/4. E o novo partido logo se engajará em campanhas de crítica aos governos petistas por pretenso envolvimento em fisiologismo e corrupção (Mensalão, Ficha Limpa, Lava Jato, etc.), independentemente do fato destas campanhas terem sido articuladas por partidos conservadores, pela grande mídia e por lideranças politizadas do Judiciário e do Ministério Público nacional. Um engajamento que porta um recado claro e transparente: para esta vertente da esquerda, por uma “boa causa”, qualquer aliança é permitida.

Pedimos perdão pela digressão (talvez excessiva), mas ela nos pareceu importante para demonstrar que o surpreendente não é a possibilidade de uma chapa Lula-Alckmin, mas, isto sim, a pretensão de que uma tal “geringonça” seja estranha à tradição política nacional e às práticas da esquerda brasileira. A prática política da esquerda brasileira nos últimos anos foi marcada por “geringoncismos”. Seja a prática do PT no poder – gerindo o problemático presidencialismo de coalização –, seja a prática do PSOL e de outros partidos (pretensamente) à esquerda do PT, que, de uma forma ou de outra, se articularam às bandeiras vassourinhas e lava-jatistas erguidas pela mídia conservadora e pelo Judiciário politizado a serviço da Casa Grande antipetista.

Na verdade, do nosso ponto de vista, a principal novidade da campanha de Lula e do PT para as eleições de 2022 encontra-se na articulação de um programa econômico muito mais à esquerda do que o programa de 2002. Acreditamos que este programa ainda seja marcadamente insuficiente e vimos tentando contribuir para o mesmo, apontando para aqueles que, do nosso ponto de vista são os seus dois calcanhares de Aquiles: 1) a excessiva dependência da aprovação de reformas legais e constitucionais (como a reforma da PEC do Teto dos Gastos); e 2) a virtual desconsideração do problema da crônica inflação brasileira e ausência de qualquer crítica ao padrão de controle de preços baseado na ancoragem cambial. Mas, para além de suas carências reais, as diferenças com o programa econômico de 2002 são evidentes. A começar pela equipe responsável por sua formulação, coordenada por Guilherme Mello e Aloísio Mercadante, professores da Unicamp de clara inflexão heterodoxa. Além do fato deste programa estar sendo objeto de ampla discussão nacional através dos fóruns regionais da Fundação Perseu Abramo e das diversas setoriais do PT.

Em suma: se há uma novidade na campanha de 2022 em relação à campanha de 2002, esta novidade não se encontra na possível chapa Lula-Alckmin. A grande novidade é que todo o debate em torno das alianças e da estratégia econômica da futura gestão está sendo feito com um grau de transparência efetivamente revolucionário num país onde a política sempre foi feita por cima, no conchavo entre os “mais iguais”. Para muitos, esta novidade é insuportável. Especialmente para aquela fração da esquerda que não se cansa de representar os papéis de Cândido e/ou de Vestal, para ter a oportunidade, a posteriori, de se chocar com a descoberta de que é impossível governar sem acordos e concessões.

A ingenuidade real não é uma qualidade entre agentes políticos. Mas a falsa ingenuidade é ainda mais perversa, pois funciona como uma bomba-relógio programada para explodir no momento mais inconveniente: com o governo em curso. Venha ou não a ocorrer uma eventual chapa Lula-Alckmin, a mera especulação sobre a mesma já cumpriu o seu papel: o de evidenciar o óbvio para as eternas vestais da esquerda: sim, haverá composições, negociações, concessões e alianças com ex-adversários. Quem não conhece o jogo da política e da governança, que desça do barco enquanto é tempo. Pois a viagem será longa e complexa, haverá borrascas e maremotos, e é preciso evitar, desde logo, os motins e o fogo (nada) amigo a bordo.

Por fim, impõe-se uma última consideração. Estaríamos sendo injustos com a esquerda que resiste à geringonça 2022 se reduzíssemos seus argumentos à crença ingênua de que será possível governar sem alianças, acordos e concessões. Há um argumento que inverte a acusação de ingenuidade: ingênua seria aquela esquerda que não aprendeu a “lição Temer”. De acordo com estes analistas, não houve tempo para qualquer mudança substantiva no quadro político nacional desde o golpe de 2016; e, por isto mesmo, não haveria base política ou material para confiar no comprometimento de um vice-presidente conservador com a sustentação da ordem democrática. Especialmente se este vice-presidente tem sólidas articulações parlamentares e será um dos responsáveis pela condução das negociações com o Congresso nas reformas legais e constitucionais (como a Reforma da PEC do Teto) que se impõem.

Sem dúvida, aqui há um ponto que exige reflexão e que dá um sentido completamente novo à “surpresa” com a geringonça 2022: o surpreendente não seria a novidade, mas, pelo contrário, a reincidência no erro. Não obstante, o raciocínio está embasado em vários equívocos.

Desde logo, é errado pretender que o País não mudou entre 2016 e 2022. Ele mudou. E muito. O Brasil de 2016 tinha assistido a quatro vitórias consecutivas do PT para o governo nacional e vinha apresentando uma performance econômica relativamente medíocre desde, pelo menos, 2014. O discurso de que a culpa dos infortúnios econômicos advinha da má gestão petista era crível e soava como música nos ouvidos de todos os segmentos econômicos, políticos e sociais que perderam espaço e poder relativo ao longo de uma década e meia de gestão democratizante e inclusiva.

Desde o golpe de 2016, os (des)governos Temer e Bolsonaro foram ágeis e pródigos em desconstruir os programas de desenvolvimento econômico e social das gestões petistas e infletir radicalmente o sentido dos mesmos. Com amplo apoio da mídia, o Congresso aprovou as reformas trabalhista e previdenciária e, em todas as esferas de governo, avançou-se na agenda privatista neoliberal. Mas ao contrário do anunciado, o número de desempregados não parou de crescer, o crescimento econômico é pífio, a piora da gestão pública é visível para todos e a prevaricação e o fisiologismo na relação entre Executivo e Legislativo chegou a níveis surreais. Em síntese: em 2016, o discurso conservador midiático de que “o problema era a Dilma e o PT” ainda tinha alguma credibilidade. Hoje, este discurso só encontra eco naquela parcela mais ignorante e mais reacionária da população: os 20% dos apoiadores do “Mito”, incapazes de diferenciar fantasia e realidade.

Além disso, é preciso que se entenda que não foi apenas o PT ou sua base eleitoral mais fiel – os estratos econômicos inferiores da sociedade e os segmentos organizados dos trabalhadores urbanos – que sofreu o golpe de 2016. A Lava Jato impôs perdas enormes para as maiores empresas industriais do Brasil. E o Governo Bolsonaro – que é filho do impeachment-golpe e da farsa que levou à prisão de Lula – impôs uma perda de respeitabilidade internacional ao Brasil da qual as lideranças empresariais de todos os setores começam a se ressentir. As retaliações pelo desmatamento da Amazônia já tiveram início e logo se aprofundarão. Mais do que nunca, urge um governo de salvação nacional.

No Brasil ainda há quem se faça de cego, ainda há quem pretenda não ver que só há uma figura pública com a dimensão necessária para resgatar a credibilidade do país na esfera internacional. Mas não é fácil manter a pose de cego e ignorante a cada novo tour de Lula pelo mundo. A despeito de ainda ser tratado como “ex-presidiário” por boa parte da mídia brasileira e de atualmente não ser mais do que um cidadão sem qualquer função pública, Lula é recebido como chefe de Estado em todos os países que visita. O empresariado nacional está assistindo a este fenômeno com muita atenção. Assim como as lideranças políticas com maior sintonia com as frações internacionalizadas do empresariado brasileiro. Dentre estas, está Alckmin, que já governou o estado de São Paulo em quatro mandatos.

Em síntese: 1) 2022 não é 2016; 2) as qualidades e méritos políticos de Dilma são inegáveis, mas a expressão e a habilidade política de Lula são únicas; e 3) mesmo admitindo que Temer e Alckmin tenham proximidade no campo ideológico, as trajetórias políticas de ambos estão baseadas em inserções sociais objetivas muito distintas, com desdobramentos não desprezíveis no campo ético. É preciso usar lentes inadequadas e/ou se deixar levar pela paranoia (que é uma péssima conselheira política) para não ver a enorme distância que separa uma possível chapa Lula-Alckmin em 2022 da infeliz dobradinha Dilma-Temer em 2014. Se queremos que a esperança vença o medo mais uma vez no Brasil, é preciso colocar os nossos próprios temores sob controle e olhar a realidade com a objetividade e a coragem que o momento exige.

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Os artigos representam a opinião dos autores e não necessariamente do Conselho Editorial do Terapia Política.

Ilustração: Mihai Cauli  e  Revisão: Celia Bartone

Clique aqui para ler “O recado de Lula para os economistas”, de Eduardo Scaletsky.