Os movimentos das peças no tabuleiro virtual do jogo político eleitoral de 2022 se aceleraram. Aos poucos, foram aparecendo candidatos com representação social para disputa. Recentemente surgiu Moro, como a materialização das aspirações de segmentos empresariais e das classes médias do sul e do sudeste e alguns jornalistas da grande imprensa especulam ser ele a preencher a lacuna do “nem Lula nem Bolsonaro”.
As pesquisas, entretanto, mostram Lula como o único capaz de vencer Bolsonaro, talvez no primeiro turno, se continuar a conversão progressiva de inimigos do PT em 2018 à condição de parceiros em 2022. E a de parceiros de Bolsonaro à condição de inimigos. Os denominados “nem nem”, agora se autodenominam “Bolsonaro não”. A vitória eleitoral depende da fidelização deste grupamento de centro e de uma convergência em pontos programáticos.
O programa para transição
Antes de discutir programa, vale lembrar que Lula traz consigo pelo menos dois pontos programáticos pétreos indissociáveis de sua pessoa: a defesa da democracia e as políticas distributivas inclusivas (que o definem como esquerda). A mensagem que passou aos economistas do núcleo de acompanhamento de políticas públicas da Fundação Perseu Abramo foi inequívoca. Recomendou dar prioridade às políticas de combate ao desemprego e à inflação e ter cuidados especiais com os problemas nas áreas de saúde e educação. E como tem feito sempre, o recado foi para ficarem atentos aos seu compromisso com a responsabilidade fiscal.
Lula não é o candidato de 2003, embora o lembre ao mover-se um pouco mais ao centro, lugar onde permaneceu nos seus dois mandatos presidenciais. A disputa naquele contexto girou em torno do projeto de continuidade da política do PSDB versus o projeto petista. O compromisso então foi com a responsabilidade fiscal e respeito aos contratos, como expressa a “Carta aos Brasileiros“. Carlos Paiva foi feliz ao explorar este assunto no seu artigo “Paixão por falsas controvérsias”. Em 2022, o núcleo político do programa eleitoral é bem diferente – portanto, a lógica das alianças também. O ponto crítico é a defesa do regime democrático e a reconstrução do país (e do Estado), que tem sido bombardeado.
O quadro indica que não haverá muito espaço para discussões estratégicas sobre modelos de desenvolvimento, que são de longo prazo. Neste sentido, nos próximos quatro anos, teremos um governo de transição, obrigado a gastar muita energia para recolocar as estruturas do Estado nos seus leitos naturais. Dentre elas há assuntos que pareciam superados, mas que precisam ser rediscutidos, como o papel do exército e das polícias.
O desafio cresce na medida em que o eleitor passa a querer saber mais sobre as propostas para gerar crescimento e estimular a criação de empregos, respeitando os espaços fiscais. Detalhar as propostas sobre estes pontos, ao mesmo tempo que inevitável, torna as coisas complicadas, pois é onde residem diferenças para formulação da política econômica de curto prazo.
Buscar consensos em torno destes assuntos não é um processo natural de acomodação, pois nem mesmo no interior da própria esquerda, ou do PT, existe unanimidade. É crucial, no entanto, dissipar a percepção da sociedade de que o PT subestima o problema fiscal.
O preconceito de uma incapacidade intrínseca à esquerda de enfrentar os problemas fiscais está associado, em parte, ao massacre midiático repisando diariamente esta ideia. Alguns discursos da esquerda ajudam a reforçar esta ideia, principalmente os que fazem analogias despropositadas, comparando o Brasil aos Estados Unidos, que têm uma dívida astronômica, mas são uma potência com força suficiente para fazer o mundo pagar pela solução de seus problemas. Uma coisa é emitir dólares, outra reais.
Sem querer jogar com palavras, a construção de consensos em torno da reconstrução do Estado e dos programas de investimento para a retomada do crescimento e inclusão social parecem fáceis, se comparados a se chegar a um acordo nas políticas para o ajuste fiscal e para o combate à inflação.
As notícias sobre a reunião promovida pela Fundação Perseu Abramo no dia 14 de janeiro falam que os economistas presentes são contrários à manutenção da emenda constitucional do teto de gastos. O passo seguinte será expor claramente quais são as propostas para alterar a lei, ficando atento ao fato de que terá de ser dito como serão alcançadas as maiorias necessárias para aprovação legal nas duas casas legislativas.
O ex-ministro da Fazenda Nelson Barbosa tem enfatizado a importância de mudar o mecanismo atual, criando outra meta fiscal que seja aceita pelos investidores e pela sociedade, ou como disse: “Temos que criar uma nova âncora de expectativa que passe na Faria Lima, mas passe nas ruas também”. Sugere que o governo eleito explicite um limite de gasto atrelado ao PIB. Na realidade, dois limites, um para o custeio e outro para os investimentos.
A nota da tendência do PT Democracia Socialista considera que a proposta de Nelson Barbosa apresenta uma saída para os da Faria Lima “pensada a partir de uma matriz neoliberal de governança”. Esta tendência interna do PT parte de uma visão pouco realista, de que existe uma “oportunidade histórica para impor uma derrota politica definitiva ao neoliberalismo”.
Fernando Veríssimo escreveu certa vez que “uma pessoa é uma coisa muito complicada. Mais complicada que uma pessoa, só duas. Três, então, é um caos…”. Imagine-se a candidatura Lula, que não é propriedade do PT, aglutina dezenas de correntes políticas, e tem o dever histórico de parar a destruição.
Por isto, será um governo de transição, cujo sentido estratégico é reduzir a ameaça autoritária e restabelecer os marcos importantes de nossa ainda frágil estabilidade democrática.
A chapa Lula-Alckmin simboliza a negação do projeto obscurantista e impõe a formulação de um programa que sirva à transição para a normalização democrática. A presença de Alckmin (ou de outra pessoa que tenha o mesmo significado político) indica a intenção de formar uma aliança com base num programa que seja um elo entre o pensamento da esquerda e o pensamento de centro, sem ser nem um nem outro, ou melhor, sendo parte de ambos.
Nos últimos dias, Alckmin, usando seu direito de postulante a vice-presidente, pediu esclarecimentos sobre a pretensão de Lula e do PT em relação à reforma trabalhista. Perguntou qual é a proposta petista. Podia ter perguntado sobre a reforma previdenciária, a autonomia do Banco Central, as privatizações ou sobre a reforma administrativa.
A gaveta de pautas espinhosas tem outros assuntos complicados, como a privatização e a política de governança das empresas estatais, entre elas a Petrobras, vedete do debate desde a eleição de Fernando Collor de Mello.[1]
Sem subterfúgios, o programa eleitoral deverá tratar destes assuntos com o destaque e a profundidade que merecem, pois serão os problemas a serem enfrentados já nos primeiros dias do novo governo. Não há espaço para driblar estes temas, nem para tratá-los apenas na generalidade, porém sempre com a compreensão de que o fundamental é construir a aliança pela democracia e derrotar Bolsonaro.
Notas
[1] A privatização da Eletrobras está agendada para os próximos meses e deverá ser um dos aríetes do debate eleitoral. Bolsonaro talvez não fale nada, mas a sociedade exigirá que Lula fale. Sobre o tema, sugiro a leitura do artigo “A privatização da Eletrobras”, de minha autoria.
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Os artigos representam a opinião dos autores e não necessariamente do Conselho Editorial do Terapia Política.
Ilustração: Mihai Cauli Revisão: Célia Bartone
Sobre o mesmo tema, clique para ler outras opiniões nos artigo “Aportes sobre a conjuntura e os desafios do PT“, de Jeferson Miola, e “A paixão por falsas controvérsias“, de Carlos A. Paiva.