A riqueza privada financeira e a desigualdade no Brasil

Estamos os brasileiros, desde 2019, submetidos ao pior governo de nossa história. O incumbente do Palácio do Planalto é alguém em quem o apelido de genocida colou como a antiga goma arábica, em razão do desastre da não política de enfrentamento à pandemia da Covid-19. Nas demais áreas, o governo parece um loteamento de amigos, afilhados, miliares de sua geração, especuladores, carreiristas e corruptos de todos os tipos que fazem o que lhes aprouver sem coordenação e gestão minimamente centralizadas. Inusitado, no entanto, é que segundo o acompanhamento de diversas pesquisas de opinião, embora desaprovado por, em média, mais de 60% da população, recebe o apoio de quase metade dos empresários. Entre esses se destacam os do agro, que no Brasil são especialmente influentes na política, por seu poder nas eleições da maioria dos pequenos municípios.

Por que um governo que não governa, apenas destrói direitos sociais, o meio ambiente e a própria administração pública tem esse apoio? A resposta deve ser buscada na relação da classe dominante com a Nação, que se constituiu desde a independência, mas especialmente no século XX, e que tem paralelo na maior parte de nossos vizinhos latino-americanos. O Brasil é apenas um endereço para seus negócios muito rentáveis, sempre passíveis de serem transferidos para alhures, fazendo uso do caminhão de mudança hi-tech oportunizado por contas offshore, não por acaso recentemente legalizadas. Muito diferente é a história de seus congêneres europeus ou norte-americanos, construtores de suas nações, que foram capazes de forjar coalizões sociais com camponeses, trabalhadores e classes médias através das quais implantaram regimes constitucionais e democráticos.

Apenas o descompromisso com os destinos do país permite que um ser ignóbil, mentiroso contumaz e que comete crimes contra a saúde, a infância e a adolescência e a administração pública cotidianamente, para não mencionar a corrupção, possa contar com seu firme apoio. Os efeitos do mau governo se enumeram numa economia com desemprego em alta e baixo crescimento, indicadores sociais em queda na saúde e na educação, aumento da fome e da insegurança alimentar e crescimento da favelização. A todos esses problemas o governo responde com mais do mesmo, numa monotonia de iniciativas nascida do golpe de 2016. Mais corte de gastos, mais privatizações, mais redução de direitos, mais impostos para os mais pobres, menos educação, menos saúde, menos ciência e tecnologia, menos benefícios da previdência e da assistência social.

Entretanto, se elidem os problemas da maioria da população cada vez mais empobrecida e desassistida, tais iniciativas ampliam as oportunidades de ganhos especulativos e de lucros para o grande capital. Apenas os pagamentos de juros da dívida consomem mais de 40% do orçamento, que só é recortado nos investimentos e gastos sociais e produtivos. Além disso, oportunidades de negócios com privatizações, concessões ou compras governamentais, muitas vezes fraudadas como mostrou a CPI da pandemia, se multiplicam, enriquecendo os sempre ricos.

A área administrativa do governo foi ocupada por militares saudosos da ditadura e sem nenhuma noção do que seja o serviço público civil, os quais revelaram, além das dificuldades óbvias de sua especialização profissional inadequada para tais tarefas, uma péssima formação cultural. Asneiras sobre o “marxismo cultural” ou o “gramscismo” apareceram ao lado da pior herança da ditadura na formação de nossos militares: a guerra contra um fantasioso inimigo interno “comunista” ou “socialista”. Estes são, na verdade, a maioria do povo: preta, pobre, indígena e com valores e ideias diferentes das suas, o fantasioso inimigo desses senhores mal-educados para a democracia.

Mas não foram apenas esses. Um bando de supostos “economistas” assumiu todo o planejamento do governo. Chefiados por um ignorante malformado na igreja de Milton Friedman em Chicago, e todos eles treinados na especulação financeira e sem nenhuma ideia do que seja planejamento além das platitudes da “escolha pública”, trataram de fazer, desde o início, o que importa: criar oportunidades de negócios para os seus amigos do “mercado”. Exemplo aberrante dessa posição “tudo para os ricos” é a afirmação do general que comanda a Petrobras: se o preço da gasolina não subir, ela vai faltar! Como se não fosse ele o responsável por mandar produzir.

Os resultados dessa gestão, até o momento, são 14 milhões de desempregados, 19 milhões que passam fome, uma inflação rondando os 10% ao ano, uma taxa de investimento em queda tanto o nacional como o estrangeiro e um PIB per capita menor do que o do ano de 2010. Para além da economia, o quadro é igualmente desolador: são 600 mil mortos pela Covid-19; desmatamento, queimadas, garimpo ilegal, e violação de áreas de preservação natural; atentados sistemáticos aos povos originários em suas terras e uma sucessão de vexames nas relações exteriores.

Não existe qualquer resquício de um projeto de sociedade. O discurso do governo, no lugar de propostas e projetos, apenas promove confronto, intolerância e violência contra qualquer manifestação da diversidade inerente a uma sociedade grande e complexa como a do Brasil. Por que alguém tão maléfico e que promove tal grau de destruição além da abundância de crimes e malfeitos de todo o tipo e uma crise sem precedente na história permanece no poder impunemente?

Em regra, uma gestão incapaz de sustentar o crescimento econômico ou de fazer frente a uma crise como a da Covid-19 perde a capacidade de governar. Com esse governo nada cola. Ao contrário, a criatura abominável goza não apenas de maioria parlamentar como conta com apoio social, embora minoritário, especialmente entre os empresários e a classe média.

Para compreender como isso é possível, é preciso olhar para duas características da nossa sociedade dos tempos atuais: de um lado, a raiz histórica da exclusão da maioria da população do uso e consumo das riquezas, bens e serviços por ela produzidos e, de outro, a globalização financeira que tornou dispensável a participação nas atividades produtivas para conseguir acesso à mesa farta da distribuição do que se tornou mais do que nunca um butim de saqueadores.

Comecemos pelo que menos diferencia nossa classe dominante de seus congêneres mundo afora nessa quadra histórica do capitalismo financeirizado e da globalização, as novas formas de extração do excedente por aquilo que David Harvey chamou acumulação por despossessão. Na sequência de uma performance sem precedentes entre os séculos XVIII e XX, em que as forças produtivas da sociedade experimentaram um crescimento extraordinário, multiplicando a riqueza de forma exponencial, na época contemporânea o processo de criação de valor sofreu uma desaceleração substancial. Para muitos pensadores, estes seriam sinais do ocaso do capitalismo. Mas é bom lembrar que as transições históricas ocorrem naquilo que Braudel chamou a longa duração, um movimento que se dá durante séculos.

Ciclos e crises sempre fizeram parte da economia capitalista. Da mesma forma, uma tendência à estagnação foi observada pelos primeiros economistas, Smith, Ricardo e Malthus como sendo um resultado necessário da forma como o modo de produção funciona. O presente momento do sistema capitalista internacional, entretanto, parece indicar seu inexorável declínio. E não porque o caráter evolucionário da história aponte para alguma outra forma de organização social no futuro, mas porque há forte evidência de esgotamento do capitalismo em relação ao que foi, nos últimos 500 anos, sua maior virtude – a aceleração sem precedente do progresso material da humanidade. O crescimento econômico do sistema internacional caiu de uma média de 4,5% ao ano entre 1945 e 1975 para cerca de 2% desde então. E, se não fosse a China, com sua sociedade de transição, e os países a ela integrados na Ásia e em outros lugares, essa média seria ainda menor.

Essa circunstância transformou profundamente a relação da burguesia ocidental liderada pelos americanos com a criação da riqueza, que deixou de ser sua principal fonte de renda. Ao lado da renda imperialista advinda da relação de dependência das economias periféricas, uma forma potente de acumulação de capital vem sendo utilizada de maneira massiva, a renda financeira, a acumulação do capital a juros. Retido na forma dinheiro e aplicado em operações com títulos da dívida pública, compra e venda de ações nas bolsas de valores, e compra e venda de quotas de capital de empresas privatizadas em geral monopolistas, além dos famosos derivativos, o capital consegue se valorizar sem mobilizar uma hora de trabalho sequer. É evidente que isso sempre existiu, mas em proporções menores do que a produção de mais-valia na produção. Essa relação cresceu desde os anos 1980 até o presente. Naquele ano, o capital, em sua forma física de prédios, máquinas e equipamento representava cerca de 85% da riqueza mundial, enquanto que em 2017 havia caído para apenas 15%, segundo estimativa do Bank of America/Merrill Lynch.

O empresariado brasileiro foi caudatário dessa tendência e, também seguindo seus sócios europeus e americanos, fez um movimento político intenso para que o Estado criasse ainda mais oportunidades de ganhos de renda financeira. Isso se deu com a elevação dos juros da dívida pública, as privatizações de empresas estatais e concessões de recursos naturais e serviços monopolistas. Entre 1990 e 2002, a política econômica foi particularmente pródiga em oportunizar o crescimento da riqueza privada financeira.

A partir de 2004, e mais ainda em seu segundo mandato depois de 2007, Lula põe em ação um plano de desenvolvimento da estrutura produtiva combinando investimento do Estado com ampliação da atividade industrial privada. A impressão que se teve na época era a de uma adesão expressiva da burguesia a seu projeto, que tinha na expansão do mercado de trabalho assalariado e no efeito das políticas sociais a garantia da sustentabilidade do crescimento. Continuada por Dilma entre 2011 e 2015, a aposta numa espiral gasto social–investimento–emprego e salário foi vetada pela classe dominante, que mobilizou seus recursos políticos e contou com o decisivo apoio dos EUA para bloquear a continuidade do ciclo expansivo através do golpe de 2016. Decididamente, o crescimento da produção não conta com o apoio daqueles que se autonomeiam “classes produtivas”, muito embora quem produza não sejam eles, mas seus empregados.

Empresas industriais que pararam de produzir para se tornarem revendedoras de importados, outras que ganham mais aplicando seu caixa no mercado financeiro, aquelas que auferem a maior parte de seus lucros financiando vendas a prazo, as que fazem operações na bolsa de venda e recompra de seus próprios títulos, ou as que se locupletam de ganhos com futuros de soja, boi, petróleo ou o que for. Para todos, produzir é o que menos dá lucro, a não ser que sejam possíveis ganhos extraordinários via redução de salários e impostos, como lhes têm propiciado os gestores da economia desde o golpe de 2016.

Mas, além dessa realidade que faz a alegria de quase toda a burguesia do planeta há já uns 40 anos, há uma circunstância própria, brasileira, que é, por um lado semelhante a condições sociais do restante da América Latina e de outros lugares na Ásia e África, e que tem um traço original: a herança de uma história de violência inaudita contra a maioria da população, ao início indígena e, com o genocídio desta população, a de pretos e pardos, que gerou um grau de discriminação e desigualdade dos maiores do mundo.

O regime político e social que a extrema direita está tentando implantar é o paroxismo da exclusão e exploração da maioria dos brasileiros, tornados inservíveis pela lógica atual da acumulação de capital no país. Esse verdadeiro pesadelo neonazista é, antes de tudo, a outra face da relação da classe dominante com a nação e seu povo. Sua origem está no extermínio indígena e na escravidão negra como nos revelaram os grandes intérpretes do Brasil de diferentes correntes do pensamento socioeconômico, desde o conservadorismo de Gilberto Freyre ao marxismo de Florestam Fernandes. Há algo de imutável no modo de ser e pensar dessa classe que se formou escravista e genocida e segue em permanente estranhamento com qualquer noção de pertencimento à sociedade desigual e injusta que construíram. A antiga funcionalidade de uma economia dos excluídos para o desenvolvimento da sociedade desigual e combinada, tão bem descrita por Francisco de Oliveira, deixa de existir e em seu lugar está em formação uma acumulação sem demanda efetiva, financeira. Hoje mais que nunca, com as facilidades da globalização, para tais senhores o Brasil é apenas um endereço onde estar, sempre temporariamente e de preferência de aluguel, para não imobilizar o patrimônio.

Desde o Andrada e Nabuco, passando pelos tenentes de 1922, os revolucionários de 1930 ou os constituintes de 1988, sempre foram muito poucos aqueles que viam nossos Tristes Trópicos como uma pátria, uma nação onde esse mosaico colorido e brilhante de etnias, culturas, engenhosidades e artes tão diversas como somos os brasileiros recebesse o acolhedor abraço da prometida mãe gentil do hino nacional. Nossas classes dominantes são eternas estrangeiras por opção, interessadas unicamente no saque das riquezas que os trabalhadores aqui produzem e que tratam de transferir o quanto antes e para bem longe. Para elas, a destruição perpetrada pelo desgoverno do maléfico, com seus mortos e desesperados pela fome e o abandono, é apenas mais uma oportunidade de ganhos.

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