A ação

Continuação do A ideia.

Padre Ambrósio encerrou a reunião com a benção, ungindo o pacto daquelas lideranças que, a depender das palavras ditas com seriedade por cada um, já era sagrada mesmo antes de Padre Ambrósio gastar seu latim.

Feita a reza, subiu-lhe à mente uma preocupação. Há algum tempo esperava da prefeitura dinheiro para a reforma do telhado da igreja. Seria vergonhoso receber o bispo sob goteiras tão próximas do altar.

Padre Ambrósio tinha paciência para esperar o juízo final, mas a paciência com o prefeito Jaiminho havia acabado há tempos. Ele prometera e reprometera dinheiro da prefeitura para o conserto do telhado. Mas suas promessas eram tão incertas quanto o clima samambaiaçuano. Substituí-lo seria a chance de, finalmente, chover dinheiro público ao invés de água na sua igreja.

Havia um porém: Sargento Braga, evangélico de carteirinha. Sendo o encarregado dos preparativos da eleição de mentira, poderia dar um jeito de favorecer algum dos pastores de Samambaiaçu. Afinal, a igreja deles também tem telhado e, às vezes, goteiras. Precisaria vigiá-lo de perto. Incumbiu Roberval, o sacristão, de espionar o sargento com o mesmo empenho que vigiava a vida dos paroquianos mais difamados da diocese.

Mas apenas evitar o mal lhe parecia pouco. Era preciso garantir o bem. Dali até o dia da “eleição” seus sermões teriam uma única mensagem: uma cidade só é verdadeiramente cristã se governado por um verdadeiro cristão, ou seja, um católico. E não qualquer católico. Mas um que levasse a sério a igreja. No seu íntimo, pensou em Helder, que além de assíduo nas missas ainda era dizimista. Mas preferiu João porque seria mais fácil colocar o nome dele nos sermões sem dar muito na pinta.

Dr. Ruy, apesar de ter complicado a reunião com suas infinitas observações, gostou da ideia desde o começo. Via nesta “eleição” a chance de tornar-se o próximo edil. No esforço de convencimento das lideranças, cada vez que Seu Zenóbio falava da necessidade de uma liderança verdadeira, pura, competente e honesta, Dr. Ruy achava que o papo era com ele, como se os demais estivessem lhe implorando que liderasse a cidade. Quando disse sim à ideia, o fez como quem aceita, humildemente, uma nobre e difícil missão.

Sabia que precisaria de votos, mas estava certo de que ele seria a escolha óbvia do povo samabaiaçuano. Seria preciso, apenas, deixar suas intenções mais claras para que se tornasse o eleito natural nesta eleição “sem candidato”.

Tratou de discursar onde pôde. Bares, padaria, campo de futebol e em outros tantos lugares de Samambaiaçu que normalmente não frequentava porque os considerava indignos de sua nobre pessoa.

Caprichou nas falas com vocabulário vetusto em solilóquios, hipérboles rocambolescas, circunlóquios, zeugmas, silepses, anacolutos, sinédoques, metonímias e até onomatopeias impróprias para alguém de sua idade.

Ao tentar deixar claras suas intenções, produziu as falas mais incompreensíveis e esquisitas da história samabaiaçuana. Muitos viram nisso sinal de loucura, o que lhes levou a dirigir a Dr. Ruy o respeito temeroso que regularmente se dedica aos loucos de toda espécie.

Exceção foi o Pastor Fabiano, que viu a língua dos anjos nas palavras e jeito esquisito do Dr. Ruy falar. O vaidoso causídico bem que poderia ter surfado na onda de ungido, mas tratou logo de desmentir o pastor porque, no íntimo da sua juridicosidade, não podia admitir misturar Estado e religião.

Sargento Braga estava com os preparativos em ritmo acelerado. Até porque percebeu que a ideia já havia vazado e via pipocando um candidato aqui, outro acolá.

Fora que estava profundamente incomodado com Roberval, o sacristão, lhe acompanhando a cada passo. Pensou até em prendê-lo inventando um motivo qualquer, mas a coisa toda já estava agitada demais para seu gosto e manter a ordem e prender o sacristão esquisito deixaria o clima ainda pior.

Recrutou mais mão de obra em nome da segurança municipal de Samambaiaçu e foi, garboso e glorioso, prestar contas de seu trabalho ao Coronel Pitanga. “Tudo pronto para a operação eleitoral ser realizada no domingo, coronel!”, disse prestando continência. “Que seja!”, respondeu o coronel balançando a mão como quem espanta uma mosca.

Continua – e termina – no sábado que vem.

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Ilustração: Mihai Cauli  
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