
Pintura do artista americano Philip Guston
No mesmo domingo em que tentava vencer resistências e ler o artigo de um desses scholars que o liberalismo eleva à categoria de pensador publicado no caderno Ideias do El País, do outro lado do Atlântico minha filha chamava a atenção para um texto desolado de um dos principais críticos de artes plásticas da revista The New Yorker. O que havia em comum entre os dois era o uso do pronome nós, o enfático nosotros do espanhol. No meio do caminho, uma mobilização de jovens encerrada pela polícia dramatizava o debate: enfrentando as mais altas taxas de contaminação e mortes provocadas pela segunda onda da pandemia na Europa um grupo de pouco mais de 300 jovens de Madri decide mesmo assim seguir promovendo suas festas clandestinas. As imagens foram exibidas nos telejornais.
Uma rápida olhada no mapa produzido pelo Google para acompanhar as estatísticas mundiais da pandemia separa claramente uma parte da Ásia (excetuada a Índia) da Europa e dos Estados Unidos e servirá de argumento para o artigo do coreano Byung-Chul Han a que me referi acima. Ainda que nem Coreia do Sul, nem Japão tenham (de acordo com o referido mapa) alcançado o patamar da China, seus níveis de contágio a essa altura lhes permitem comemorar e dizer que controlaram a expansão do vírus.
O mesmo vale para a Nova Zelândia, o outro dos países citados pelo professor da Universidade de Berlim. E não se trata de comparar alhos com bugalhos, mas países de perfis semelhantes no que diz respeito a níveis de industrialização, tipo de urbanização, modelo de sociedade etc. Coreia do Sul e Japão são, grosso modo, tão capitalistas e avançados tecnologicamente quanto França e Alemanha. Então, pergunta o professor Han, como se explica que os índices de contágio nesses países da Ásia sejam agora tão baixos e que tenham conseguido manter a pandemia sob controle enquanto o ocidente aderna como um Titanic?
Pode parecer estranho para o leitor brasileiro que ainda se insista no assunto. Embora no mesmo mapa do Google o Brasil apareça gloriosamente entre os top ten dos mais infectados do mundo, com mais de 160 mil mortos, parece que já ninguém mais se interessa pela coisa. Por aqui na Espanha, mesmo tendo conseguido reduzir a taxa de mortos relativamente aos infectados, a segunda onda está em expansão e a manchete de todos os jornais e telejornais, dia após dia, é o tal vírus e as medidas necessárias para contê-lo. Os governos estão contra a parede, se sentem obrigados a prestar conta dos seus atos. É assim, ainda é assim, ou é mais ou menos assim. Com Pedro Sanches ou Emanoel Macron e Angela Merckel, com liberais ou socialdemocratas. Até com Boris Johnson.
Uma questão de caráter
Mas o que diz o artigo do professor Han é que a ação dos governos muitas vezes não é suficiente. E aqui chegamos ao ponto. O enfático nuestro dos espanhóis. Byung-Chul Han escreve que quando “as pessoas acatam voluntariamente às regras de higiene, não há necessidade de controles ou medidas forçadas, que são tão onerosas em termos de pessoal e tempo”.
No começo da pandemia e, em seguida, quando lá pelo final de abril ou maio, a primeira onda se aproximava do pico, havia a sensação de que, talvez em função da memória das guerras, existia na Europa um forte sentimento de coletividade e capacidade de sacrifício ou, para usar a expressão do professor Han, civismo. A paciência e a capacidade de se comportar decentemente em situações de emergência foram rapidamente se dissipando e logo que, após o fim das férias de verão, se iniciou a segunda onda, simplesmente desapareceram. Lembrando uma afirmação do ex-chanceler Helmut Schimdt: “É nas crises que se mostra o caráter”. Han põe em dúvida se o velho continente estaria “conseguindo mostrar caráter diante da crise”.
O que, de fato, parece pretender o mestre da prestigiosa Universidade de Berlim (onde lecionou Hegel e outros luminares) é uma astuciosa manobra diversionista. Sim, é verdade que “o liberalismo (ocidental para o prof. Han) parece propiciar a decadência do civismo”. E que “grupos de adolescentes celebrem festas ilegais em meio à pandemia, que cuspam e tussam sobre os policiais que tentam dissolvê-las, que as pessoas já não confiem no Estado, são sinais de declínio do civismo”. (Perdão?!: “já não confiem no Estado.” Como é que é?! Enfim, adiante…). A notícia da festa em Madri é posterior à publicação do artigo, de qualquer forma não terá sido a primeira, nem a última.
Então, qual a receita?
Um nós forte, escreve Byung-Chul. É o que ensina a experiência da Ásia (além da discreta Nova Zelândia). “A pandemia nos mostra o que é a solidariedade. A sociedade liberal necessita de um nós forte. Do contrário se desintegra numa coleção de egoístas.” Porque não, “não é verdade que o liberalismo conduza necessariamente a um individualismo vulgar e a um egoísmo que jogam a favor do vírus”. Quem sabe seja o inverso, e a natureza do vírus seja aquilo que afinal gerou o individualismo e o egoísmo vulgar e ao fim e ao cabo conduziu a sociedade ao liberalismo. O que precisam aprender os ocidentais é a se comportarem melhor, desde a sala de aula, como bons alunos. Trump, desde a mais tenra infância, deveria ter deixado de lado “seu puro egoísmo e seu afã de poder” que socavou “o civismo e dividiu o país”. Que ninguém responsabilize o liberalismo pelo mau comportamento dos seus alunos e eventuais presidentes. Há uma maneira mais suave. Zen, talvez. Japão e Coreia, e suas milenares culturas de respeito ao civismo indicam o caminho.
Ventos frios
Quanto ao artigo publicado pela The New Yorker, começava assim: “O mundo da arte ficou chocado com o adiamento, possivelmente até 2024, da exposição ‘Philip Guston Now’, por parte das instituições que a tinham programado: a National Gallery of Art, em Washington, a Tate Modern, em Londres, o Museu de Belas Artes de Houston e o Museu de Belas Artes de Boston.(…)” A mostra é composta por pinturas ” sombrias e cômicas do grande artista americano, que apresentam figuras de desenho animado da Ku Klux Klan fumando charutos, vagabundeando em carros abertos e em geral fazendo-se de idiotas”. Seu autor, Peter Schjeldahl é um dos mais respeitados críticos de arte da revista, na qual escreve desde 1998.
A razão alegada do adiamento seria, segundo o diretor da National Gallery, Kaywin Feldman, “o momento difícil que vive a América”. Mas o texto de Schjeldahl põe logo o dedo na ferida ao comentar que isso “é dizer as coisas suavemente”. Para ele, “o caso Guston é um sintoma de uma deterioração em toda a sociedade da confiança nas instituições e da tolerância para expressões antagônicas”.
Não muito tempo atrás, ouvi desde muito longe rumores de que no Brasil teriam ocorrido tumultos provocados por grupos ligados ao atual ocupante do poder contra uma determinada exibição de arte em algum museu do sul do país… mas o Brasil, desgraçadamente, já faz tempo que não é levado a sério, é carta fora do baralho – imagine-se, um país cujo ministro fazenda é um economista, como dizer… de quarto escalão?!
Mas aqui estamos falando de uma exposição de um artista canônico (a expressão não é minha, é de Schjeldahl), em alguns dos mais importantes centros de arte do ocidente. Schjeldahl não é neófito. Não é a primeira vez que vê a expressão artística ser hostilizada. “Um precedente flagrante para o caso Guston surgiu com malícia premeditada em 1989, quando exibições institucionais das (excelentes) fotografias homoeróticas de Robert Mapplethorpe… colocaram o senador Jesse Helms… numa espetacular cruzada moralista. O mundo da arte logo recuperou sua obscuridade… até que, através da estética troféu de Jeff Koons, seus valores foram magicamente transformados em preços, que se tornaram notícia, pagos por uma oligarquia internacional especulativa de ultraricos.”
Apesar da confiança de que a “arte que é transgressiva voltará a ocorrer”, Schjeldahl conclui seu artigo sobre o espantoso adiamento da exposição de Guston afirmando que “ventos frios sopram do futuro para as aspirações de proporcionar à sociedade, ou mesmo a segmentos da sociedade, a capacidade de superar as diferenças com respeito mútuo. Muitas vezes refleti que os usos de ‘nós’… são inevitavelmente presunçosos, embora tenham a intenção retoricamente apenas de convidar, ou talvez seduzir, à concordância. Nunca senti menos confiança no pronome…”.