O centenário de nascimento de Celso Furtado incita lembrar sua ímpar contribuição para a teoria e o debate sobre o Brasil e a América Latina. Autor de vasta obra, ressalto uma contribuição decisiva: a fixação da categoria “subdesenvolvimento” na análise econômica, transformando a análise sobre o desenvolvimento capitalista, que já vinha dos clássicos, em uma teorização específica, com foco naqueles países com dificuldades ou empecilhos para resolver seus problemas econômicos e sociais. Foi o programa de pesquisa mais original e criativo que surgiu na área de Ciências Humanas na América Latina, reconhecido e lido nas mais importantes universidades europeias e americanas. Seu centro irradiador foi a Comissão Econômica para a América Latina – CEPAL, da qual, em sua época, Furtado foi o intelectual de maior envergadura, pois ia além da formação dos economistas tradicionais, transitava com solidez pela história, sociologia, antropologia, ciência política e cultura.

A pergunta desafiadora era antiga e, no Brasil, aflorou na segunda metade do século XIX, no bojo das discussões sobre as consequências da Guerra do Paraguai e a crise do escravismo e do Império: por que o país era “atrasado”? Por que a baixa produtividade, a pobreza, as desigualdades regionais, a ignorância, a alta mortalidade?

Nessa época, apareceram os primeiros pensadores posteriormente denominados de “intérpretes do Brasil” e uma resposta usual argumentava que se devia ao fato de ser um “país jovem”. Esta avançava, pois pelo menos reconhecia o problema, mas ao mesmo tempo assumia um tom conformista: aconselhava dar tempo ao tempo… um dia seremos iguais à Europa. O país era, de certo modo, infantilizado. E, também, induzia outra questão: por que os EUA, também jovem, não conhecia os mesmos problemas e já despontava como um dos países líderes em produção e produtividade, já superando vários europeus, e até sua antiga metrópole, a decadente Inglaterra? O contexto também favorecia as respostas ancoradas no determinismo geográfico ou biológico. O clima tropical, a mistura de raças, a herança do indígena e do negro e a colonização dos portugueses (em si uma mistura de beduínos com povos bárbaros, dizia-se) eram algumas das explicações mais propaladas.

A maior contribuição de Furtado foi ensaiar uma resposta que superava as anteriores em dois aspectos decisivos: não se tratava de “atraso”, porque não era uma etapa de uma linha evolutiva; e as causas não eram naturais ou raciais, mas históricas. E, assim, o país jovem ou atrasado passou a ser denominado de subdesenvolvido.

Em sua reflexão, Furtado sustentou que não era etapa porquanto, a rigor, os países então considerados desenvolvidos nunca tinham sido subdesenvolvidos. A tese hoje pode parecer óbvia, mas este ovo de Colombo afrontava várias concepções arraigadas e foi alvo de críticas ferozes, da esquerda aos liberais. Tal situação histórica supunha uma divisão internacional do trabalho na qual países “centrais”, ou industrializados, coexistiam com países “periféricos”, ou predominantemente agrários (os termos entre aspas eram os usados por ele).

E havia um segundo motivo mais instigante ainda: em seu entendimento, o subdesenvolvimento tendia a se autorreproduzir, ou seja, não havia forças endógenas que o levariam a ser superado por si só: se nada fosse feito, o Haiti continuaria Haiti e o Nordeste permaneceria sempre Nordeste (Furtado foi o primeiro presidente da SUDENE, criada no governo de Juscelino Kubitschek). Não havia no subdesenvolvimento o “gérmen de sua superação”, usualmente associado à negação da tese pela antítese dos manuais de materialismo histórico.

A análise apontava para a industrialização como o caminho necessário (embora não suficiente) para reverter o subdesenvolvimento. A crítica dos coevos não tardou porque, de um lado, abalava o status quo dos setores agraristas e exportadores, indispostos a dar novas ênfases à política econômica e a uma redistribuição de renda coerente com a proposta de ancorar a produção no mercado interno. Também trazia como corolário que era preciso intervenção governamental e planejamento, pois, sem ação determinada, o mercado, por si só, não superaria o subdesenvolvimento.

Já do lado oposto vinha a divergência quanto ao caminho para a reversão. A análise furtadiana não era apenas contemplativa, mas acenava para um projeto de nação industrializada e menos desigual – e não de socialismo. No mundo então bipolarizado, era imperdoável não ter a União Soviética como modelo e – tudo levava a crer – seu projeto acenava como utopia mais à Europa Ocidental do que à ditadura do proletariado stalinista. Nelson Werneck Sodré, um dos intelectuais nomes mais renomados do Partido Comunista, considerava-o, no chavão da época, um reformista pequeno-burguês – até sofisticado na análise histórica, como mostrara o livro Formação econômica do Brasil, publicado em 1959 – mas adepto de um desenvolvimentismo tecnocrático assentado na ortodoxia econômica e no keynesianismo. Seria o sonho do desenvolvimento mera utopia? Tanto quanto, ou até menos – poder-se-ia argumentar – do que aventar a possibilidade de repetir por aqui, em plena Guerra Fria, a experiência histórica da revolução russa de 1917.

Hoje, 100 anos após o nascimento deste paraibano de Pombal, suas análises continuam sendo fruto de intenso debate. O mundo mudou, a globalização estreitou as possibilidades de projetos nacionais com maior autonomia, o fordismo foi ultrapassado, com ele, a sedução da tese de mercado ancorado com consumo de massas. O socialismo soviético também foi superado e a industrialização como mola-mestra da mudança perde espaço diante da complexidade da nova onda tecnológica, assentada nos serviços de ponta e intensivos em conhecimento e tecnologia. Todavia, se as teorias precisam ser atualizadas e, com elas, as soluções e caminhos para enfrentar os desafios, os valores permanecem. E os valores que inspiraram a produção científica e as ações de Celso Furtado continuam, renovadas, atuais como nunca. Tudo o que ele associava ao subdesenvolvimento não foi ainda ultrapassado.